sexta-feira, 5 de março de 2010

Polítca e religiões diante do futuro

Entrevista com Dom Follo sobre o debate organizado pela comunidade de São João

PARIS, sexta-feira, 5 de março de 2010 (ZENIT.org).– O Studium da Comunidade São João organizou um debate sobre “Política e religiões diante do futuro”, na sede da UNESCO de Paris, nos dias 19 e 20 de março.
Ele fará “dialogar as sabedorias religiosas, em particular a sabedoria cristã e a sabedoria filosófica”, destaca o observador permanente de Santa Sé na UNESCO. Dom Francesco Follo, nesta entrevista com a Zenit.

-Qual é a questão de fundo deste debate, que conta com o duplo patrocínio da UNESCO – está prevista a intervenção da sua diretora geral, Irina Bokova – e do Conselho Pontifício da Cultura?
Dom Francesco Follo: Uma pequena afirmação preliminar: não podemos esquecer a especificidade da situação do homem no mundo. O homem é o único ser do universo que faz parte de dois “mundos”: o dos corpos e o dos espíritos, aberto à transcendência.
Seria preciso formar, então, a consciência das pessoas para compreender e viver, para ver em si mesmas e respeitar nos demais a complexidade da experiência da liberdade.
Também seria preciso encontrar e propor as motivações e os instrumentos para que o homem “religioso” e o homem “político”, ou melhor, a dimensão religiosa e a dimensão política do homem vivam juntas, na esfera privada e na esfera da relação comunitária, social (de indivíduo a indivíduo, de indivíduo a sociedade).
Finalmente, seria preciso educar e formar o cidadão nesta dimensão completa que Jacques Maritain chamou de “humanismo integral”.
Para alcançar este objetivo, o simpósio fará que as sabedorias religiosas dialoguem, particularmente a sabedoria cristã e a sabedoria filosófica.
Dessa maneira, haverá uma verdadeira cooperação entre políticos, filósofos, teólogos e religiosos, para uma teoria e uma prática do bem comum.

-O senhor fala do “bem comum”... Um dos principais oradores será o cardeal Peter Turkson, presidente do Conselho Pontifício “Justiça e Paz”: o ensinamento social tão rico da Igreja Católica se dirige a todas as culturas?
Dom Francesco Follo: Eu daria duas respostas aqui. A primeira vem dos fatos, da realidade da existência.
Os mártires cristãos, que dão testemunho do seu compromisso com Deus e com os homens até consequências extremas, unem-se ao compromisso de todos os homens. Já se disse que “as encíclicas foram escritas com o sangue dos mártires”.
Para que o Evangelho entre em uma cultura, deve encontrar o caminho do homem, penetrando nas diferentes culturas, inclusive arriscando a vida dessas testemunhas que são os mártires, mártires “para” os demais e não contra os demais.
Assim, a doutrina social da Igreja se converte na voz dos que não têm voz: fala-se de “opção preferencial pelos pobres”. O sujeito da doutrina social da Igreja é a própria humanidade.
A segunda resposta também vem da história. Com a encíclica Centesimus Annus (1991), a universalidade da doutrina social da Igreja deu um passo a mais.
O Papa João Paulo II destacou que milhões de pessoas, com seu compromisso, inspiraram a doutrina social da Igreja.
Ao longo da história, houve “um grande movimento pela defesa da pessoa humana e pela defesa da sua dignidade”, mas em colaboração com os crentes de outras religiões e com as pessoas de boa vontade.
Recentemente, o Papa Bento XVI, em sua encíclica social Caritas in veritate, recordou-nos que a caridade é universal e que é a principal força de propulsão de um verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira.
Esta caridade se baseia na verdade. De fato, uma caridade que não esteja fundamentada na verdade é um envoltório vazio que se preenche arbitrariamente (Caritas in veritate, n. 3).
Vou lhe dar um exemplo. Se um homem tem fome, não é difícil compreender o que é bom para esse homem: comer. Não é difícil saber o que é o bem desse homem: alimentar-se suficientemente.
Assim, à pergunta sobre o bem do homem, respondi com certeza: é a alimentação. Eu disse a verdade sobre o bem do homem.
Se eu, ao invés de alimento, dou roupa a um homem faminto, é porque não o amo de verdade, é porque não quero o seu bem. A “caridade na verdade” significa querer o bem do outro, verdadeiro e real.

-O cardeal André Vingt-Trois, arcebispo de Paris, presidente da Conferência Episcopal da França, presidirá a Eucaristia. Que lugar esta ocupa na realização do simpósio?
Dom Francesco Follo: Penso que a Missa foi pensada especialmente para destacar que o diálogo entre as pessoas deve estar arraigado no diálogo com Deus. Os dois diálogos não podem ser opostos; os dois têm sua justificação e sua necessidade teológica e espiritual.
A oração está na origem profunda do diálogo fraterno porque, graças a ela, posso pronunciar palavras que vêm de Deus. Ela também é o futuro das palavras fraternas, porque na palavra dirigida ao próximo já existe uma palavra a Deus.

-O debate pretende ser não somente intercultural, mas também inter-religioso: destaca a participação do grão-rabino Haïm Korsia, capelão geral israelense do Exército do Ar, e de M. Tareq Oubrou, teólogo, imame da mesquita de Bordéus. As três grandes religiões monoteístas tiveram uma relação muito diferente da política...
Dom Francesco Follo: Assim vemos como as religiões e as culturas asiáticas e africanas também têm algo a dizer neste encontro, cujo objetivo é oferecer uma contribuição para a “governança”.
Depois das diferentes crises (política, econômica, financeira) que o mundo atravessou e 30 anos depois do discurso de João Paulo II na UNESCO, o Studium São João quis destacar as contribuições da filosofia e das religiões para a governança sobre questões de atualidade, como as relações entre justiça e paz, o lugar dos pobres na sociedade, a luta pela dignidade humana, a tensão entre a lógica do bem e a busca da lógica financeira, econômica e política, e a responsabilidade com relação à família humana.

-Como filósofo, que mediação o senhor acha que a reflexão filosófica representa no diálogo das culturas?
Dom Francesco Follo: O cristianismo é a religião do Logos. Assim, no diálogo, os cristãos devem estar atentos para permanecer fiéis a esta orientação: viver uma fé que vem do logos, da razão criadora e que, portanto, está aberta a tudo o que é realmente racional, o que é cultura.
“A” cultura é um acontecimento, mais do que um dom acabado. Eu não tenho a pretensão de contribuir para a cultura do amanhã.
É suficiente abrir os olhos e os ouvidos, no entanto, para perceber que não só as grandes culturas têm um valor universal, mas inclusive as que dialogam entre si na obra dos grandes artistas.
Homero não escreveu somente para os gregos, mas para todos nós. Shakespeare não escreveu somente para os ingleses, mas para todos nós. A Bíblia não foi composta somente para um pequeno povo do Oriente Médio ou para alguns grupos de cristãos, mas para todos.
A universalidade é a pretensão das culturas, a “interculturalidade”, o ritmo normal de pertença a uma cultura, e o ritmo normal da vida da cultura.
Somos realistas; o diálogo intercultural é um diálogo que conduzimos em paz conosco e no qual constatamos todos os frutos em nós mesmos.
Podemos chegar mais longe o tema e dizer que a “interculturalidade” é um fato, antes que um dever a ser cumprido. Ela não espera que formemos o conceito, para ser inscrita em toda cultura um pouco rica.
Nós estamos aqui na situação dos que constatam, escrevem a história e querem, evidentemente, que o futuro seja fiel ao passado.
Estamos também, poderíamos dizer, na situação dos garantidores: se é necessário que as grandes obras do Oriente sejam traduzidas a línguas ocidentais, será preciso ajudar os tradutores e editores.
Mas, assim como a UNESCO não inventou a cultura nem a definiu, tampouco criou “a interculturalidade” nem a definiu, e pode estar satisfeita por desempenhar a função de ajudar.
Assim será fiel à sua definição. E permita-me repetir que é no respeito à verdade, à singularidade, como servimos com mais fidelidade as cidades, em plural, as culturas, em plural, e também à cultura, em singular.

-Como definir o diálogo para chegar realmente a dialogar?
Dom Francesco Follo: O diálogo não é somente uma troca de ideias; deve ser sempre uma troca de dons (cf. Concílio Ecumênico Vaticano II, constituição dogmática Lumen Gentium, 13).
Existe diálogo quando alguma das duas partes “sai” de si mesma, quando se abre à diversidade, que é alteridade, tendo como consequência a “troca” de temas, sua “transformação”.
Através do diálogo e como efeito do diálogo, sempre há uma abertura de horizontes.
Eu gostaria de terminar propondo-lhe uma imagem que resume o que estou dizendo: “Quando a borboleta chega, a flor se abre; quando a flor se abre, a borboleta chega”.
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Reportagem por Anita Sanchez Bourdin
Fonte: Zenit.org 05/03/2010

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