Roberto Belisário (*)
Um dilema cósmico envolvendo as origens e o destino do Universo, que perseguia os cientistas há décadas, parece ter sido praticamente resolvido por um grupo de pesquisadores de instituições norte-americanas e européias. O dilema punha frente a frente duas hipóteses opostas sobre o destino final do Cosmos. Uma delas prevê que daqui a vários bilhões de anos o movimento de expansão do Universo (afastamento das galáxias entre si) se reverterá, levando as galáxias posteriormente a se chocarem umas com as outras, num colapso cataclísmico envolvendo todo o Cosmos (hipótese do Big Crunch). A outra hipótese diz que o movimento de expansão continuará para sempre, e o Cosmos só vai "morrer" muito mais tarde, depois que todas as estrelas tiverem se apagado. O veredicto, a partir de agora, é a favor desta última.
O dilema jornalístico de como noticiar a descoberta não teve uma solução tão elegante. Omissões, frases malfeitas e conceitos errados impediram que se desse uma noção adequada da sua importância e fizeram aumentar ainda mais a injusta pecha de hermetismo e excentricidade que envolve a Física Moderna.
O trabalho foi publicado em 27/4/00 [revista Nature, 4040, 955-959 (2000)] pelo grupo do Experimento Boomerang (sigla em inglês para "Observações em balão de radiações extragalácticas milimétricas e Geofísica"), formado por cientistas de vários institutos de pesquisa norte-americanos, italianos, canadenses, franceses e britânicos. É o ponto alto de uma série de pesquisas iniciadas em 1992 pelo grupo do COBE, ligado à NASA. Os pesquisadores descartaram a hipótese do Big Crunch a partir de observações astronômicas de uma radiação que permeia todo o espaço, chamada "radiação de fundo". Essa radiação foi liberada 300 mil anos depois do Big Bang – a "Grande Explosão" que deu origem a todo o Universo. Ela contém informações sobre algumas características gerais do Universo que mostram que a hipótese do Big Crunch muito provavelmente não é verdadeira. O texto integral do artigo pode ser encontrado no site da revista Nature [veja remissão abaixo].
A publicação do trabalho foi noticiada em vários jornais. Porém, uma simplificação conceitual excessiva transmitiu ao leitor algumas idéias erradas e deixou vários conceitos obscuros. As observações dos pesquisadores foram descritas como corroborando a hipótese de um "universo plano" ou "chato". O Estado de S.Paulo descreveu-o "chato como uma panqueca". Ora, a expressão "universo plano" aparece no próprio artigo da revista Nature. Mas trata-se de um termo técnico, matemático, cujo significado físico refere-se, entre outras coisas, ao movimento do Universo como um todo ao longo do tempo. No caso, "universo plano" indica que a velocidade com que as galáxias afastam-se umas das outras é justamente a mínima necessária para evitar que, um dia, a ação gravitacional entre elas reverta esse movimento, e elas passem então a aproximar-se entre si. Já na hipótese do Big Crunch, a velocidade de afastamento seria menor que a mínima, e usa-se o termo "universo fechado". Logo, a palavra "plano", aqui, nada tem a ver com a forma da distribuição de matéria do Universo – que não é plana, mas distribui-se quase homogeneamente pelo espaço. Muitas vezes, entretanto, esse tipo de simplificação excessiva é encontrada em textos de divulgação científica escritos pelos próprios cientistas.
Matéria escura
Muitas reportagens usavam termos técnicos sem maiores explicações, como "densidade crítica" e "curvatura do espaço". Frases como "a relação espaço-tempo curva-se sobre si mesma" (Jornal do Brasil) foram mal formuladas a ponto de se tornarem ininteligíveis. A descrição da radiação de fundo como "uma espécie de brilho" (Jornal do Brasil) dá a impressão errada de que ela é visível a olho nu.
Uma boa divulgação da descoberta, que evitou esses deslizes, apareceu nas reportagens da Folha de S.Paulo (27 e 28/4/00). O jornal dedicou-lhe um dos editoriais do dia 28 e incluiu comentários adicionais sobre a sua importância filosófica e religiosa, como seria apropriado para uma fato científico desse relevo. Também foi noticiado que o Brasil participará de futuros experimentos que complementarão os do projeto Boomerang.
Mas nem a Folha escapou de uma omissão, generalizada na imprensa, sobre a autoria do trabalho: vários jornais noticiaram que "cientistas italianos" realizaram a descoberta; a Folha disse que a publicação foi feita por Paolo de Bernardis, da Universidade de Roma. Mas o artigo da Nature, na verdade, é assinado por 36 cientistas de várias instituições da Europa e dos EUA, incluindo a Universidade de Roma "La Sapienza", o Caltech (EUA), a Universidade da Califórnia de Santa Bárbara (EUA) e outras no Canadá, Reino Unido, França, EUA e Itália. O experimento é liderado por Paolo de Bernardis, de Roma, e por Andrew Lange, do Caltech.
Uma segunda razão para a importância dos resultados do Experimento Boomerang é a conexão com um conjunto de novas teorias a respeito das origens do Universo, chamadas "teorias inflacionárias". Uma das previsões destas teorias é justamente de que o universo deve ser "plano", no sentido técnico descrito acima. Por conseguinte, o trabalho do Boomerang eleva essas teorias a um nível bem mais alto que suas concorrentes e, com isso, clareia sobremaneira nossa compreensão sobre os estágios iniciais do Universo.
Entretanto, as teorias inflacionárias foram citadas (quando foram) muito de passagem pelas reportagens. Também praticamente não foi mencionado outro problema que se relaciona com o experimento, o da quantidade de matéria escura presente no Universo. Denomina-se "matéria escura" a parte da matéria do Universo que não emite radiação alguma, e conseqüentemente não pode ser observada diretamente. Porém, ela tem uma contribuição fundamental na decisão contra ou a favor da hipótese do Big Crunch.
Uma explicação da teoria inflacionária compreensível ao leigo, bem como uma exposição das teorias atuais sobre a origem do Universo, aparece no livro Dobras do Tempo, de George Smoot e Keay Davidson (Editora Rocco, 1995). Na internet, pode ser encontrada no website do COBE.
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(*) Físico
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