Paulo Ghiraldelli*
O senador romano Menenius Agrippa veio da plebe. Por isso, quando os plebeus, revoltados contra os patrícios, se retiraram de Roma para fundarem uma cidade própria, ele foi enviado pelo Senado para persuadi-los a voltarem. Os patrícios temiam a falta de mão de obra e, os plebeus, por sua vez, temiam um ataque ao acampamento deles, pelas tropas do Senado. O ambiente era tenso, mas Agrippa conseguiu seu intento e trouxe os plebeus de volta à cidade de Roma. Perguntado como fez para ter êxito na empreitada, disse que não fez outra coisa senão contar uma fábula aos plebeus. Era a historieta “A barriga e os membros”.
A fábula é bem simples. Ei-la:
“Houve um tempo, bem no passado longínquo, que as partes do corpo não concordavam umas com as outras, como fazem agora. Cada uma tinha suas próprias idéias e sua própria voz. Um dia, algumas partes começaram a achar que era bem injusto terem de se preocupar e trabalhar duro para fornecer tudo para a barriga, enquanto que esta ficava lá no meio do corpo, sem fazer nada, só usufruindo o que era trazido para ela. Então, essas partes conspiraram em conjunto e, assim, concordaram que as mãos não iriam mais levar comida para a boca, que a boca não iria mais abrir para a comida e os dentes não iriam mais agarrar e mastigar o que recebiam. A barriga roncou e fez revoluções em protesto, mas todas as partes permaneceram ferozmente firmes na manutenção da fome, para trazer a barriga à submissão. Todavia, logo essas partes começaram a se sentir fracas. A fadiga tornou-se cada vez pior, até que elas, a barriga e todo o corpo pereceram de inanição. Então, ficou claro que a barriga aparentemente ilhada tinha sua própria tarefa no feito, e dava seu retorno tanto quanto recebia; ela digeria tudo e dava o alimento aos membros por meio do sangue”.
Esse episódio de Agrippa apareceu comentado por muitos escritores e a fábula serviu a eles de várias formas. O episódio caiu nas mãos de Marx, quando este escrevia O capital. Marx tomou a fábula para dizer que a modernidade havia, afinal, pela divisão do trabalho, realizado a absurda fábula de Agrippa. Um homem transformado em um fragmento do seu próprio corpo seria realmente o que teria ocorrido na modernidade. Uma vez não sendo mais um todo e, sim, apenas parte, ou seja, uma peça na linha de montagem, o homem acabaria por ser uma peça que só conseguiria encontrar o seu todo unitário na fábrica, na empresa, sendo esta seu novo todo, fazendo-o perder o seu velho corpo, o seu antigo todo.
Marx nunca prometeu encontrar uma maneira que pudesse devolver o homem ao seu corpo, à sua unidade originária, mantendo a vigência do trabalho. O que ele disse é que se poderia tentar reorganizar a sociedade de tal maneira que, tendo essa sociedade se acoplado a um determinado estágio avançado de automação, o homem iria ampliar seu tempo livre e, no limite, escaparia de todo e qualquer trabalho voltado à subsistência. Assim, em uma sociedade para além da dos tempos modernos, o homem poderia exercer diversas atividades, segundo seu gosto, aptidões e lazer, nas diversas partes do dia. O homem seria músico de manhã, pintor à tarde e se dedicaria à leitura e à produção de romances à noite. A idéia do intelectual renascentista apareceu no horizonte utópico de Marx como o homem em geral, realizado na sociedade re-humanizada, digamos assim.
É claro que isso nunca foi outra coisa senão utopia. Utopias, ao menos as clássicas, não são para se realizar. Mas a utopia de Marx pertence ao tempo de casamento dessas sociedades imaginárias com a história. O século XIX foi uma época em que a idéia de realização da utopia por meio da ação política tornou-se linguagem comum. Por isso, os que se envolveram com a literatura de Marx e Engels, inclusive eles próprios, falaram aqui e ali de uma sociedade de transição, uma passagem do mundo atual para a vida feliz.
Enquanto essa sociedade não viesse a se instaurar como uma possibilidade, Marx admitiu uma fase histórica na qual o homem teria, ainda, de trabalhar pela sua subsistência. Nesse caso, para Marx, seria tolice manter a fórmula da relação entre educação e trabalho dos burgueses menos ou mais liberais. Esta fórmula burguesa era dupla: previa uma educação propedêutica à Universidade para os filhos dos ricos e uma educação profissionalizante para os filhos dos pobres. Marx acreditava que tal fórmula era inútil para qualquer grupo social, mesmo sob as condições vigentes da sociedade não-rehumanizada. Isso porque a sociedade, pela força do movimento sindical e da política dos trabalhadores, tenderia a ir diminuindo as horas de trabalho e, concomitantemente, pela automação, tenderia a ir tornando os trabalhos profissionais cada vez mais fáceis de serem aprendidos. Sendo assim, a educação em termos profissionais no âmbito do ensino médio ou propedêutica ao ensino superior (que por si só é profissionalizante), ainda na sociedade vigente, estaria fadada ao fracasso, ou seja, se tornaria efetivamente inútil e acabaria descartada. Então, a proposta marxista, ainda em uma situação moderna vigente de uma sociedade não re-humanizada, seria a da educação guiada pela “politecnia”, ou seja, por uma escola na qual houvesse o privilégio do ensino dos fundamentos de todas as técnicas.
Assim, na literatura de Marx e Engels, apontava-se para a situação de abolição do trabalho do homem, o que se poderia verificar a partir de uma reorganização da sociedade. Essa sociedade reorganizada não limitaria os afazeres do homem. Nessa nova sociedade, o homem se dedicaria, então, a tudo que pudesse lhe dar o desenvolvimento completo de suas “potencialidades individuais”. Todavia, antes mesmo de qualquer apontamento na direção de tal sociedade, ainda na sociedade vigente, o que se teria em termos educacionais deveria estar pautado pela politecnia. Esta proposta se responsabilizaria pela boa educação, aquela antes articulada às bases teórico-práticas das técnicas que fincada nas técnicas propriamente ditas.
Essa proposta de politecnia não chegou a ser seriamente ponderada. Ela ficou envolta antes na idéia da utopia marxista na qual todos nós seríamos sábios renascentistas que na fase histórica em que, enfim, seríamos ainda trabalhadores.
Acontecimentos políticos conduziram a pedagogia para outros rumos. No Leste, durante o século XX, a revolução para a construção da sociedade re-humanizada se desencaminhou rapidamente e, portanto, a politecnia saiu da pauta, se é que chegou a ser objeto de real investigação e aplicação. No Ocidente, por sua vez, a literatura sobre a pedagogia marxista, em todas as suas variantes, entrou em baixa quase que definitivamente após as revoluções liberais do final do século XX.
Os regimes chamados de comunistas do Leste Europeu foram varridos da Terra. O que os substituiu, o chamado – muitas vezes erradamente – neoliberalismo, não manteve o seu prestígio inicial. Mesmo que mantivesse, nunca conseguiu articular forças não conservadoras em torno dele. Assim, ao terminar o século XX, todas as formas políticas geradas a partir das “energias utópicas da sociedade do trabalho” (Habermas) perderam seu charme, seu prestígio e, desse modo, tornaram as pedagogias a elas associadas, algo e pouco interesse, ao menos na linha do que vinha ocorrendo com o tema educação e trabalho.
As doutrinas do nazi-fascismo, do liberalismo, da social democracia, do comunismo e do neoliberalismo terminaram o século XX derrotadas. Todas essas doutrinas desejosas de reorganizar a vida a partir da reorganização do trabalho deixaram de conquistar as pessoas, ao menos do modo que fizeram no decorrer do século XX. Mesmo as duas propostas vigentes, a de variantes liberais e a da social democracia, sobrevivem como espectros, não como alimentos de algum entusiasmo. Assim, a ligação entre educação e trabalho, quanto aos seus problemas teóricos, deixou de atrair filósofos da educação e pedagogos. Sem energias utópicas não se faz pedagogia. Ora, uma pedagogia ligada ao trabalho, sem energias utópicas que possam vir da “sociedade do trabalho”, não faz sentido. Assim, se hoje pressentimos que não vivemos mais na “sociedade do trabalho” porque não vemos mais nem o trabalho e nem a reorganização do trabalho como o que pode nos ajudar a montar uma nova sociedade, fica claro a razão pela qual não temos mais nos interessado pelo tema “educação e trabalho”.
Assim, na prática, não sobra nada de novo para a política e, por inércia, há a continuidade das velhas propostas hegemônicas, que não irão adiante. Trata-se, é claro, da manutenção da conversa sobre a escola profissionalizante e o “ensino técnico”. É isso que ocupa e que ocupará os discursos oficiais dos governantes.
Particularmente, no Brasil, é isso que veremos nas campanhas políticas para Presidente da República em 2010: em termos educacionais, algo medíocre e fora do eixo das necessidades da nossa vida contemporânea. Ouviremos a cantilena dos candidatos à esquerda e à direita que, junto da retórica de promessas vazias, falarão em termos concretos, mesmo, apenas da abertura de escolas técnicas e de institutos de educação profissional universitário ou pré-universitário. A política educacional, principalmente no Brasil, continuará um movimento inercial do regime dominante na modernidade, posto a partir do século XIX.
Podemos influir na política educacional vigente, colocando uma nova pedagogia na mesa? Temos permissão para colocar cartas pedagógicas que não estejam articuladas às questões do trabalho, ao menos não nos temos até agora postos? Temos como falar em uma pedagogia articulada a energias utópicas vindas de outras paragens que não o mundo do trabalho? Essas são as questões que estão postas para a filosofia da educação nesses próximos anos.
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*Paulo Ghiraldelli Jr. Filósofo. Educador Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/2010/05/pedagogia-e-trabalho/
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