segunda-feira, 10 de maio de 2010

Soneca criativa




Muitas pessoas já se inspiraram em um sonho para criar obras artísticas ou solucionar problemas que as impediam de realizar algum invento. Segundo pesquisadores, dormir relaxa o corpo, mas mantém o cérebro bastante ativo


Tatiana Sabadini

“Eu acordei de um sonho muito nítido: duas pessoas tinham uma conversa intensa em uma campina no meio de um bosque. Uma delas era uma menina comum. A outra era incrivelmente bonita e faiscava, era um vampiro. Eu tinha um milhão de coisas para fazer, mas fiquei na cama pensando no sonho. Fiquei tão intrigada com a história que odiei a ideia de esquecê-la. Eu me levantei e sentei em frente ao computador para escrever — uma coisa que eu não fazia há muito tempo. Eu não queria perder o sonho, então eu digitei tudo o que eu lembrava e chamei os personagens de ele e ela.”

A declaração é de Stephenie Meyer, que em 2 de julho de 2003, quando teve aquele sonho, era apenas uma desconhecida dona de casa, mãe de três meninos. A partir das lembranças daquela noite, a norte-americana criou os cinco livros da saga Crepúsculo, campeã de vendas no mundo todo. Assim como a escritora, milhares de pessoas ganham inspiração, buscam resolver equações, problemas e tentam desvendar o futuro enquanto dormem. Mas o que a ciência tem a dizer sobre o fenômeno?

Pesquisadores ainda têm muito a responder sobre o que ocorre com o cérebro quando surgem os sonhos, mas já sabem que eles têm uma importante relação com a formação da memória. Segundo Angela Cristina Valle, pesquisadora do Laboratório de Neurociências da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o cérebro armazena as informações que a pessoa vivenciou ao longo do dia justamente durante a fase em que os sonhos aparecem.

Esse período é conhecido como sono REM (sigla em inglês para movimento rápido dos olhos), uma das cinco fases do sono, que, juntas, formam um ciclo de aproximadamente 90 minutos. Como uma pessoa dorme oito horas em média, ela pode ter entre quatro e cinco sonhos por noite. “(Nessa fase), é como se estivéssemos em um estado de vigília interna. O padrão de ondas elétricas é igual a quando estamos acordados. A pressão arterial, a frequência cardíaca e o movimento dos olhos aumentam”, descreve Angela.

Há quem jure que não sonha, mas a ciência já comprovou que essa impressão está errada. Na verdade, as pessoas apenas não se lembram. Provavelmente, Stephenie Meyer e outros artistas e cientistas que sonharam com suas criações (veja o quadro) se recordavam da experiência porque acordaram logo depois de um ciclo completo. “Conseguimos comprovar isso, experimentalmente, monitorando a pessoa com eletrodos. Relembramos do que vivemos durante o sono se acordamos logo após o fim do ciclo, geralmente 15 minutos após o sonho”, afirma a pesquisadora da USP.

Símbolos

O fato de os sonhos terem inspirado algumas pessoas não significa que ele possa ser controlado. Esforços para ver o astro de Hollywood Brad Pitt ou alguns números para jogar na loteria enquanto dormimos serão provavelmente nulos. “Só com muito esforço e muito treino podemos manipular uma informação. Quando estamos acordados, conseguimos. Mas dormindo não temos acesso a isso”, comenta Angela.

O que não quer dizer que o sonho não possa ativar a criatividade ou estar relacionado a acontecimentos futuros. “Sonhar tem tudo a ver com a imaginação. Geralmente, as coisas aparecem nos sonhos em forma de símbolos”, diz o brasiliense Sidarta Ribeiro, professor do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, doutor pela Universidade Rockefeller com pós-doutorado pela Universidade Duke.

Além disso, diz o cientista, quando sonhamos ativamos a nossa memória e, dentro dos circuitos neurais, podem surgir desejos (1)e situações que têm alguma chance de ocorrer no futuro. “É como se fosse um oráculo de probabilidades. Com base na memória, ficamos tentando acertar o futuro”, explica o pesquisador. As chances de sintonizar o sonho com os possíveis eventos futuros pode depender da realidade de cada um. “Uma pessoa que está em uma guerra, por exemplo, sonha que vai matar ou ser morta. A pessoa que tem uma vida normal, com problemas pequenos, não vai ter sonhos muito claros, nem entender muito bem o que eles querem dizer”, comenta. Dessa forma, é possível concluir que Paul McCartney provavelmente só sonhou com uma melodia tão rica como a da canção Yesterday porque trabalhava com música e costumava dedicar grande parte de seu tempo a buscar novos arranjos de notas.

A relação com a memória explicaria também por que dias agitados e estressantes podem levar a pesadelos. A correria do dia a dia pode deixar o sono mais agitado. “Se o componente emocional é muito forte, ela vai ser refletido no sonho. Quando alguém vai dormir com muitas preocupações na cabeça, coloca essa energia no sonho e eles podem ficar mais intensos”, afirma Angela Valle, da USP.

1 - Interpretação

Na virada do século 19 para o 20, Sigmund Freud inaugurava a psicanálise com o livro Interpretação dos sonhos, publicado pela primeira vez há 111 anos. Para Freud, os sonhos eram a porta de entrada para desejos profundos, que surgem em forma de símbolos ou metáforas. “Se alguém se comportasse acordado como nos sonhos, seria tachado de louco”, escreveu o austríaco.
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Fonte: Correio Braziliense online, 10/05/2010

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