Mas a televisão e a internet rebaixam
a imaginação e o padrão de nosso gosto,
diz o diretor
O diretor e artista plástico Terry Gilliam, de 69 anos, define-se como a ovelha negra do Monty Python, grupo de cômicos que fez sucesso nos anos 70 com um humor nonsense. “Sou o único americano”, diz, por telefone, de Londres, onde ele mora desde 1969, ano em que estreou no programa Monty Python’s flying circus na BBC. No início, ele montava as vinhetas surrealistas do programa. Logo passou a atuar e dirigir os melhores filmes do grupo, como Vida de Brian (1979). Dirigiu 17 filmes, entre eles Brazil – o filme (1985) e Os irmãos Grimm (2005), com Heath Ledger, sempre enfrentando reveses. Teve de parar as filmagens de The man who killed Don Quixote em 2001 e só conseguiu finalizar Dr. Parnassus com improvisação.
ÉPOCA – Como surgiu a ideia da trama de Dr. Parnassus?
Terry Gilliam – Ela foi surgindo de conversas com meu parceiro de script Charles McKeown. Sempre quis fazer um filme a partir de uma trupe de teatro ambulante – e as ideias surgiram num vaivém, a gente se comunicou por e-mail até chegar a um roteiro. E novas ideias fluíram até na pós-produção.
ÉPOCA – O senhor comparou as filmagens de Dr. Parnassus a um esforço de malabarismo. Como equilibra controle e improvisação?
Gilliam – Se existe improvisação em meus filmes, ela é cuidadosamente controlada. Há uma estrutura anterior que apoia o improviso. Os atores sugerem alterações, a produção procura adaptar o roteiro às locações. Eu não gosto de perder o pé das coisas. Eu sei o tempo todo o que está acontecendo, mesmo que muitas vezes pareça improviso. O equilíbrio, portanto, beneficia o controle sobre a liberdade, embora essa seja permitida! Apesar dos limites, é um método bastante lúdico de trabalhar.
ÉPOCA – O filme contém uma crítica à sociedade de consumo. O senhor acha o consumismo ruim?
Gilliam – Odeio o consumismo. Hoje as pessoas são levadas a ficar consumindo o tempo todo, pelas ruas, nos shopping centers ou na internet. Parece que é o único mundo possível para os seres humanos. No Ocidente estamos tão mergulhados nisso que nem nos damos mais conta. As pessoas já não vivem por si mesmas. Existem tantas coisas para consumir e tantas necessidades criadas que elas vivem num permanente estado de excitação e dívida. Não há tempo para mais nada. Você precisa trabalhar dobrado para pagar suas contas porque tem de atualizar os computadores a cada três meses e fazer upgrades em seus celulares. O consumismo todo está impedindo as pessoas de ter uma vivência mais profunda do mundo. O mundo é bem mais interessante do que a imagem que faz dele nossa sociedade hiperconsumista.
ÉPOCA – É possível salvar o capitalismo?
Gilliam – Talvez tenha chegado a hora da reconstrução do mundo, sob um novo ponto de vista, um novo modo de vida. Hora de dar uma parada para reflexão. O capitalismo como está não será capaz de se sustentar. Não há recursos suficientes – naturais ou industriais – para continuar a satisfazer nossa fome de consumo. Uma catástrofe se anuncia, e precisamos nos mexer. Há muita gente se esforçando mundo afora para alterar a situação. Estou de acordo com o que Bono profetiza: “A pobreza é o futuro”. Vamos ter de viver de maneira mais modesta.
ÉPOCA – O senhor considera Dr. Parnassus sua obra mais pessoal?
Gilliam – Tudo o que fiz até hoje é essencialmente pessoal. Sou um diretor autor. O que procuro é produzir filmes criativos e inovadores que possam sugerir uma expansão da mente e da criatividade das pessoas. Não conseguiria fazer outra coisa. De certa forma, Dr. Parnassus é meu filme mais transparente. Ali está tudo o que penso sobre o cinema, sobre o mundo e a fantasia.
“Se a gente não toma cuidado,
a internet nos transforma
em pontos de uma rede.
Não quero
ser um ponto”
ÉPOCA – Como foi lidar com a morte de Heath Ledger no meio das filmagens?
Gilliam – Foi um momento terrível, uma grande tragédia que se abateu sobre a equipe. Heath morreu durante uma pausa que deu em Nova York entre as filmagens de Londres e as que faríamos no Canadá. Pensei em parar tudo porque Tony (o personagem interpretado por Ledger) era central na história. Tivemos então de reformular o roteiro. Faltavam sequências importantes, mas quase todas se passavam no lado de lá do espelho mágico do Doutor Parnassus, no universo da fantasia, onde tudo é possível. Então Charles (McKeown) e eu chegamos à solução do impasse: resolvemos convidar os amigos de Heath para preencher suas atuações no mundo da fantasia. Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell se encarregaram do papel, oferecendo assim um rosto variado e mutante para Tony do lado de lá do espelho. Acho que o filme ganhou em poesia. Não imaginava que Heath nos deixasse tão jovem, e muito menos em um filme meu. Ele estava vivendo um momento especial, de descoberta de novas possibilidades de atuação. No começo do filme, ele estava vivendo o Coringa, de Batman – o cavaleiro das trevas. Esse papel mexeu profundamente com ele, que até se assustou com o que era capaz de fazer. Ao interpretar Tony, traduziu a experiência de Coringa numa explosão criativa. Ele inspirou o elenco e a equipe. Heath foi um ator extraordinário. Jamais saberemos até onde poderia ir.
ÉPOCA – Por que o senhor escolheu o tema do teatro?
Gilliam – Adoro teatro, embora não vá tanto assistir a peças. Ele sempre fez parte de meus filmes. Basta lembrar O barão de Munchausen, que também tem como personagens atores de teatro mambembe. Os atores vivem um drama porque lutam para ser vistos e ouvidos, querem atingir as pessoas, abrir os olhos do público para novas sensibilidades – e ninguém lhes dá a mínima. A trupe do Doutor Parnassus percorre Londres com suas peças mágicas e antigas, e só encontra pela frente um público brutalizado e burro. Mas não é só em Londres. Vejo isso no mundo todo. É uma pena porque o teatro tem a capacidade de mudar a cabeça das pessoas, alterar profundamente a sensibilidade.
ÉPOCA – O gosto pela grande arte decaiu neste século?
Gilliam – Sem dúvida. Já não existe a mesma sensibilidade do passado. As pessoas perderam o foco, já não se concentram como antes e o interesse pela arte é mais comercial do que essencial. Hoje as galerias de arte querem alcançar os lances mais altos em leilões, e o conteúdo ficou de lado. O cinema de arte também tem saído de cena... O padrão de gosto ficou mais cínico e superficial.
ÉPOCA – Por que em seus filmes a fantasia subverte a realidade? Não é escapismo?
Gilliam – Não. A fantasia é uma coisa fundamental na vida, decisiva em todas as atividades humanas. Seria quase impraticável existir sem sonhar e imaginar, sem viver no mundo paralelo dos devaneios. Os grandes saltos científicos surgem da imaginação e da fantasia. A ciência progride por meio de saltos poéticos. Atualmente os meios de comunicação estão transformando a visão de mundo. Tenho um filho de 12 anos. Moramos no centro de Londres, a 100 metros de uma rua de comércio, num ambiente seguro. O menino não consegue sair à rua porque só quer ficar vendo televisão e navegando na internet. Isso cria um falso contato com a realidade. E a realidade é bem mais interessante.
ÉPOCA – A internet não abriu uma janela para o mundo?
Gilliam – Até certo ponto, sim. Mas odeio usar internet, odeio até mesmo usar e-mail porque isso me tira o tempo de que preciso para meus projetos e o que gosto de fazer. Se a gente não toma cuidado, a internet nos transforma em pontos de uma enorme rede. Eu não quero ser só um ponto. Prefiro ser eu mesmo, off-line. Sou um cara ecológico, que gosta do mundo real e da fantasia... inteligente.
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Edição: Luís Antônio Giron
Fonte: Revista ÉPOCA - 01/05/2010
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