O palco dentro de nós
Em Múltipla Escolha, a escritora Lya Luft vale-se da antiga metáfora
do Teatro do Mundo para discorrer sobre as perplexidades
da vida moderna
A gentileza do espírito
"A chegada da velhice não precisa enferrujar a alma. Sendo inevitável, ela devia ser aguardada e recebida como uma amiga há muito anunciada. E ela vem aos poucos, vem mansa. Não precisamos pedir desculpas quando ela chega, inventando para os outros que temos menos idade do que temos. (...) O espírito é mais importante do que rugas, manchas, andar lento e corpo encolhido: não o espírito jovem, mas um espírito próprio de cada idade, aberto e gentil." (Trecho de Múltipla Escolha)
PENSAR É TRANSGREDIR
Lya: críticas às cotas raciais, à repressão religiosa e à permissividade dos pais de adolescentes
Autora de romances como A Asa Esquerda do Anjo e Reunião de Família, carregados de densidade no exame dos dramas familiares, foi como ensaísta que a escritora gaúcha Lya Luft, de 71 anos, se tornou um fenômeno editorial. Tratando de temas similares – a família, o envelhecimento, a morte de pessoas amadas – em um registro mais leve, próximo da crônica, Perdas & Ganhos, de 2003, vendeu mais de 600 000 exemplares. Pensar É Transgredir, na mesma linha, teve vendagem superior a 200 000. Mesmo nesses livros de não ficção, é possível surpreender a mente de uma romancista em atividade, seja no modo como pequenas narrativas aparecem para reforçar a argumentação, seja no uso criativo da linguagem. Em seu novo ensaio, Múltipla Escolha (Record; 192 páginas, 32,90 reais), Lya – que também é colunista de VEJA – recorre a uma das mais antigas imagens literárias: o mundo como um teatro onde se desenrola o drama humano.
"Enquanto o homem vive, está num palco", dizia o orador romano Cícero. Na versão atualizada de Lya, o palco é ocupado por um ser pequeno e impotente, um boneco – representação do indivíduo esmagado por imposições sociais –, que é manipulado por criaturas terríveis, mitos e preconceitos modernos. No fundo do palco, surgem várias portas, alternativas (as múltiplas escolhas do título) que, com coragem e independência, a pobre marionete poderá perseguir, desde que consiga se libertar de seus manipuladores. A partir dessa moldura alegórica, Lya discorre livre e criticamente sobre assuntos os mais diversos, dos padrões de beleza irreais divulgados pela publicidade à política de cotas raciais (à qual ela se opõe com sua costumeira lucidez).
Sem compromisso com nenhuma linha de pensamento estabelecida, Lya é capaz de atacar ao mesmo tempo a permissividade dos pais modernos na educação de adolescentes e a repressão que as igrejas tradicionais impõem ao sexo. Entre essas suaves diatribes, aparecem algumas belas notas memorialísticas. Lya lembra, por exemplo, o toque especial de sinos que a igreja luterana usava para anunciar a morte de uma criança na cidade onde cresceu. Nas suas mãos, o Teatro do Mundo ganha um sentido íntimo e delicado – é dentro de nós mesmos que a peça, cômica ou trágica, se desenrola.
____________________Reportagem:Jerônimo Teixeira
Fonte: Revista VEJA online - Edição 2163 / 5 de maio de 2010
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