Denis Russo Burgierman*
Este ano, falou-se muito que uma ou outra campanha contratou “o marketeiro do Obama”. Pelo jeito, os políticos brasileiros chamaram a equipe inteira, do diretor ao estagiário, mas não adiantou. Se o upgrade da democracia brasileira para a versão 2.0 deu “pau”, não foi por falta de dinheiro gasto com marketing digital.
Você ouviu falar: em 2008, Barack Obama tornou-se o primeiro presidente da era digital, ao vencer uma eleição cuja estratégia estava fortemente baseada na internet. Obama começou a corrida como minoritário dentro de seu próprio partido. Relegado na disputa por financiadores, diante da proximidade de sua adversária democrata, Hillary Clinton, com setores riquíssimos, como os bancos e a indústria farmacêutica, parecia destinado a um papel coadjuvante. Acabou vencendo Hillary e ganhando impulso para massacrar o candidato republicano, que não viu o que o atingiu.
Claro que a campanha de Obama não aconteceu exclusivamente na internet. Seu sorriso luminoso apareceu fartamente na televisão, e seu nome foi impresso em cores patrióticas em outdoors, adesivos e bandeiras tremulantes. Mas foi pela internet que grupos de apoiadores autônomos se articularam para criar estratégias locais. Em alguns estados americanos, as eleições primárias são decididas não por votos secretos, mas por debates verbais abertos – nesses estados, os apoiadores de Obama superaram os de Clinton com imensa folga. Estavam muito mais engajados, preparados e ativos. A internet também foi fundamental para a guerra de informação travada na campanha. E, claro, graças a ela, a campanha de Obama conseguiu o feito inédito de convencer três milhões de pessoas a doar um total de meio bilhão de dólares. Doar para a campanha não era mais complicado que comprar um livro pela Amazon.com (na verdade, era mais simples).
Na época, não faltaram análises de que a natureza da política tinha mudado para sempre. De que uma “democracia 2.0” estava sendo instalada no sistema operacional do globo, mais sustentada no engajamento cívico que em lobbies obscuros. Diante disso, a importância da internet nas eleições presidenciais brasileiras, que se realizaram no começo de outubro, pareceu um tanto frustrante.
Verdade que todo mundo se divertiu com os vídeos de Tiririca e com as cenas na qual Serra “confessa” comer todo mundo. Os candidatos (ou seus dedicados assessores) “tuitaram” e até criaram redes sociais à moda da que Obama fez. Marina Silva, a mais internética dos presidenciáveis, chegou a enfatizar a relevância de doações online (recebeu um total de R$ 125.965,30 até o dia 21 de setembro, algo como 3 mil vezes menos que Obama). As frases espirituosas de Plínio viraram hits de microblog. Mas, de substantivo mesmo, de concreto, que diferença a internet fez para a democracia brasileira?
Definitivamente, não dá para dizer que o que aconteceu nos Estados Unidos dois anos atrás não tenha influenciado em nada no processo eleitoral brasileiro. Este ano, li repetidamente a notícia de que uma ou outra campanha contratou “o marketeiro do Obama”. Afinal, quantos marketeiros tinha o Obama? Os políticos brasileiros, pelo jeito, contrataram a equipe inteira, do diretor ao estagiário. Se o upgrade da democracia brasileira para a versão 2.0 deu “pau”, não foi por falta de dinheiro gasto com empresas de marketing político digital.
Foi assim que o episódio Obama chegou ao Brasil: como um case de marketing. Uma campanha bem-sucedida a ser copiada, assim como as empresas brasileiras copiam muito do que faz sucesso no mercado americano. É disso que se falou.
O que mereceu bem menos atenção, aqui pelas nossas praias ensolaradas, foram as ideias por trás do marketing. Faltou dizer que o que Obama fez foi bem mais que um gasto inovador com o planejamento de mídias de sua campanha. Obama pensou de uma maneira nova sobre a relação entre eleitores e políticos. E o mais interessante é que ele não fez isso apenas na campanha eleitoral. Após ser eleito, enviou sinais ao país de que queria manter, como presidente, essa proposta. Mudar a relação entre eleitores e políticos é importante, claro. Mas muito mais importante é a relação entre governo e cidadãos. A conversa não pode acontecer apenas uma vez a cada quatro anos.
MyObama
A plataforma digital sobre a qual a campanha obamista nas eleições se sustentou era um site de comunidades bastante simples, mas que trazia em si uma lógica nova na política, que pouco tempo antes seria impensável. Tratava-se do MyObama, MyBO para os íntimos, uma criação de um menino inteligente, tímido e gay, chamado Chris Hughes. Chris tinha 24 anos, mas seu currículo já era razoável. Anos antes, ainda na faculdade, ele foi um dos cinco garotos que começaram uma empresinha de fundo de quintal. Talvez você já tenha ouvido falar dela: chama-se Facebook.
O MyBO não era uma tubulação vertical, despejando conteúdo centralmente produzido para a massa ignara lá fora. Ele era – assim como o Facebook – uma rede. Uma rede na qual qualquer usuário – fosse o nome dele Barack Obama ou José da Silva – era um nodo numa teia de conexões. Não havia um centro no MyBO, cada pessoa era uma pessoa e podia se conectar com qualquer outra. Todas produziam conteúdo. Por exemplo, meninos espertos das boas faculdades escreviam de graça para desmentir com pesquisa boatos mentirosos espalhados pela direita raivosa dos EUA.
No MyBO, cada usuário podia ganhar pontos se realizasse tarefas. A maioria das tarefas era bastante simples. Por exemplo, o voluntário encontrava no site uma lista de números de telefones na sua região e tinha de ligar e tentar convencer as pessoas a votar em Obama. Algumas tarefas eram bem mais complexas: organizar eventos para arrecadar dinheiro, para citar uma. Os pontos eram distribuídos de acordo com a quantidade de trabalho envolvido.
"Eleições são resultados grosseiros
de processos imensamente complexos,
que abrangem decisões subjetivas
de cada um dos milhões de cidadãos do país.
Muita coisa influencia num resultado,
e é bom não subestimar o peso do charme,
da lábia e da inteligência do candidato e
das qualidades absolutamente
opostas de seu antecessor."
Do ponto de vista financeiro, os pontos valiam tanto quanto um tostão furado. Mas, na lógica da comunidade, valiam bastante. Pessoas com mais pontos e mais conexões eram valorizadas e tinham mais facilidade de se conectar e, consequentemente, acumular mais pontos. Pode parecer bobagem, mas essa diversão de colecionar pontos é imensamente poderosa sobre nossos sistemas cerebrais de recompensa, moldados pela evolução (os mesmos que nos convencem a trabalhar demais para acumular mais dinheiro do que precisamos). O fato de as pessoas se sentirem participantes as deixava felizes e aumentava sua vontade de participar, o que, por sua vez, aumentava o senso de participação, e assim por diante.
Isso decidiu a eleição? Não tem como fazer esta afirmação. Eleições são resultados grosseiros de processos imensamente complexos, que abrangem decisões subjetivas de cada um dos milhões de cidadãos do país. Muita coisa influencia num resultado, e é bom não subestimar o peso do charme, da lábia e da inteligência do candidato e das qualidades absolutamente opostas de seu antecessor. Mas a rede de Hughes certamente criou condições para que grupos de eleitores se articulassem sem relação hierárquica com o comando da campanha, inovando, experimentando, trocando melhores práticas. Esses experimentos foram fundamentais, em vários estados, nas primárias contra Hillary. E essas vitórias iniciais, que provavelmente só foram possíveis graças ao MyBO, criaram uma onda de empolgação. Quando o republicano John McCain ficou em pé ao lado de um Obama energizado por essa onda, ele parecia uma relíquia de um século distante.
Quando a eleição passou, o MyBO não foi dissolvido. Continuou existindo, mas ganhou um design um pouquinho mais formal e um nome mais pomposo: Organizing for America (Organizando pela América). Apesar da diferença no layout, o site permaneceu o mesmo: uma rede simples de pessoas que gostam de Obama, conectadas horizontalmente, premiadas com pontos pela participação. Só que, em vez de eleger Obama, o objetivo da comunidade virtual passou a ser ajudá-lo a governar.
Em alguns momentos, essa ajuda se dá de forma muito parecida com as estratégias da campanha: por exemplo, chamando a população para mandar e-mails pedindo para os congressistas votar de determinado jeito. O site teve algumas sacadas bem interessantes, embora de pieguice indiscutível. Quando o novo sistema de saúde foi finalmente aprovado no Congresso, todos os membros da rede receberam uma mensagem pedindo seu endereço postal para ser enviado um diploma que atestava que seu portador era “coautor da lei”. Claro, a mensagem aproveitava para pedir mais uma doaçãozinha, mas o recebimento do diploma não estava vinculado ao dinheiro.
Um novo jeito de pensar
Imagino que os marketeiros, ao ouvirem esses cases, fiquem encantados com a sua engenhosidade. Mas, para mim, o mais engenhoso foi o fato de que não havia apenas marketing nessas iniciativas. Havia efetivamente um jeito novo de pensar. Não se trata de dizer que Obama seja um santo redentor. Mas ele está, sim, efetivamente engajado na criação de uma forma de comunicação com o país que seja mais horizontal. Há sinais disso nas suas entrevistas, no seu canal do YouTube, nos seus frequentes convites a membros da sociedade civil para conversar. Um documento interno, distribuído logo no primeiro mês de seu governo para todos os chefes de departamentos e agências do governo, talvez seja o exemplo mais claro disso. O memorando começava assim:
Assunto: transparência e governo aberto
“Minha administração está comprometida a criar um nível sem precedentes de abertura no governo. Vamos trabalhar juntos para garantir a confiança pública e estabelecer um sistema de transparência, participação pública e colaboração. A abertura vai fortalecer nossa democracia e promover eficiência e eficácia no governo.”
A seguir, o memorando detalha três objetivos para todo mundo que trabalha no governo: transparência, participação e colaboração. Por fim, o presidente determina que o governo tenha um CTO (Chief Technology Officer – executivo chefe de tecnologia), que ficaria responsável por preparar, em 120 dias, suas recomendações para uma “Diretiva de Governo Aberto”, à qual todos os funcionários do governo teriam de obedecer a partir de então.
A tal Diretiva acabou criando uma série de novas instituições democráticas. Talvez a mais relevante delas seja o site data.gov, no qual todos os documentos do governo devem ser disponibilizados de graça, com fácil acesso, busca eficiente e num formato que possa ser lido por pessoas ou por softwares que gerem mais dados a partir do cruzamento entre eles. Em linhas gerais, a intenção é convidar os americanos a contribuir para o governo, a participar efetivamente do processo de governar. É dar a todo mundo acesso a toda a informação que, até outro dia, era exclusiva dos governantes.
Enfim, a afinidade entre Obama e a transparência digital não foi só uma estratégia para ganhar a eleição. Ela se apoia em uma série de políticas decididas pelo próprio candidato, assessorado por grandes teóricos, como o professor de Harvard (na época, em Stanford) Lawrence Lessig, e por executivos de alto nível, como Chris Hughes. Essas medidas tinham como objetivo abrir a política e o governo, torná-los mais transparentes, mais participativos e mais colaborativos. E o marketing que se seguiu propagandeou, de maneira altamente profissional, essas ideias novas.
Nada de novo
Pois aqui, no Brasil, só interessou o marketing. As duas principais candidaturas (Dilma e Serra) importaram apenas os marketeiros, não os teóricos ou os executivos, muito menos as ideias. As grandes campanhas continuam hierárquicas e centralizadas, comandadas por três ou quatro pessoas com imensa experiência. A informação é quase sempre controlada, as ideias fluem de cima para baixo, os membros mais jovens das equipes apenas executam o que se decide nos andares de cima.
Por trás da aparência de novidade, o que se viu na eleição daqui foi a mesma política antiga que tomou forma no início dos anos 1990, quando ainda batucávamos em gigantescas máquinas de escrever. Para muita gente, os recursos da internet serviram apenas para realçar a bizarrice do nosso sistema político, baseado em alianças aleatórias para somar segundos na TV. O Tiririca que o diga.
Isso não significa que as mesmas ideias que promoveram a mudança de relações nos Estados Unidos não estejam se difundindo no Brasil. Elas estão. A campanha de Marina Silva foi ajudada por alguns teóricos brasileiros da turma do Lawrence Lessig e, se conquistou apenas uma pequena fração do sucesso de Obama, foi bastante bem-sucedida para um partido sem coligações e com tempo na TV pouco superior à duração de um comercial.
O que fica de bom
Mas certamente as maiores novidades na política brasileira não vieram nem das grandes organizações de mídia nem das campanhas eleitorais: vieram de pequenas iniciativas independentes da sociedade civil. Acompanhei de perto algumas delas porque aconteceram na empresa onde trabalho, a Webcitizen. O Votenaweb (http://www.votenaweb.com.br) é um site que ajuda você a acompanhar as leis em tramitação no Congresso Nacional e a comparar o voto dos congressistas ao modo como você votaria se estivesse no lugar deles. O Eu Lembro (http://www.eulembro.com.br) – recentemente tirado do ar por medo de que o corporativismo dos políticos levasse a uma multa pesada da Justiça Eleitoral – permite que você siga todas as notícias sobre seus candidatos e ajuda a impedir que esqueça em quem votou.
Essas iniciativas da Webcitizen são dois pequenos exemplos no meio de uma multidão de websites nascidos nos últimos anos para horizontalizar as relações entre cidadãos e governos. Um dos meus favoritos é o incrível Cidade Democrática (http://www.cidadedemocratica.com.br), que promove bem-sucedidas campanhas de “adoção de vereador” e foi utilizado por cidadãos de Jundiaí para planejar uma rede cicloviária, que acabou efetivamente implantada.
Há no Brasil, como, aliás, em todos os países que estão tendo suas aspirações modificadas pelas novas tecnologias da informação, uma imensa vontade de propor um novo modelo de participação pública. É fato que os políticos tradicionais continuarão mobilizados para evitar essa horizontalização, que eles interpretam como uma redução de poder. Mas, depois que essas coisas começam, ninguém consegue pará-las.
Falta muito para 2014?
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*Denis Russo Burgierman é diretor de conteúdo da Webcitizen, ex-diretor de redação da revista Superinteressante e ex-Knight Fellow da Universidade Stanford, na Califórnia. Atualmente, faz parte do time da curadoria da conferência TEDxAmazonia http://www.tedxamazonia.com.br.
(Envolverde/Le Monde Diplomatique Brasil)
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