sábado, 30 de outubro de 2010

O publicismo obscurantista da campanha presidencial 2010

Cláudio Lorenzo*

Obscurantismo pode ser definido como uma forma de política que busca impedir o esclarecimento da população por considerar o conhecimento perigoso ou inadequado. No campo da Ética e da Moral, como não é possível determinar objetivamente o que é o correto, ou seja, não é possível aplicar métodos de confirmação universalmente aceitos, tomar uma decisão ética análoga à verdade, implica necessariamente em estabelecer espaços públicos de diálogo, e nesses espaços se construir consensos entre os sujeitos e coletividades implicados em uma determinada situação a regular.
Tomemos a questão do aborto como uma dessas situações a regular e que protagonizou durante boa parte da campanha presidencial. Trata-se de uma situação sobre a qual existe uma tremenda carga valorativa oriunda das diversas visões de mundo que formam as sociedades plurais como a nossa. Neste caso, tomar uma decisão sobre se devemos manter a criminalização nos termos que a lei define ou se devemos mudá-la, por considerar eticamente aceitável a interrupção da gravidez em sua fase inicial e visando à proteção de milhões de mulheres que praticam anualmente o aborto inseguro, implica necessariamente na exposição livre de argumentos por todos os segmentos da sociedade.
Uma campanha presidencial poderia ser um momento privilegiado para esse tipo de debate. Entretanto, as campanhas já não pertencem aos partidos, mas aos grupos publicitários contratados para construir a imagem dos candidatos e escrever midiaticamente as suas políticas. Esses novos “publicistas”, donos de uma implacável racionalidade instrumental, incapazes de refletir sobre qualquer outra coisa que não seja a obtenção de seu fim, guiam os caminhos da abordagem de questões como o do aborto no Brasil, não importando suas demais consequências para a sociedade.

"Dessa maneira, a população brasileira,
não pode ter acesso a outros argumentos distintos
daquele da sacralidade do embrião.
 Não pode refletir, por exemplo,
sobre a injustiça da lei que pune exclusivamente a mulher,
sobre o fato de que existem mulheres violentadas
 pelos companheiros quase diariamente e
que os filhos que nascem dessa violência,
reduzem sua força de trabalho e
 aumentam sua dependência do agressor."

É assim que a ideia tradicional de origem religiosa de que o embrião tem o mesmo estatuto moral da criança e, portanto, a interrupção da gravidez em qualquer fase equivale a um assassinato, tornou-se uma verdade inquestionável na campanha. Um dos candidatos, certamente orientado por seus “publicistas” acusava a oponente de querer matar as criancinhas. A outra candidata, sentindo o perigo para sua campanha em abrir o debate, e orientada por sua equipe também excelente equipe de “publicistas” apressou-se em declarar-se pessoalmente contrária à modificação da lei.
Dessa maneira, a população brasileira, não pode ter acesso a outros argumentos distintos daquele da sacralidade do embrião. Não pode refletir, por exemplo, sobre a injustiça da lei que pune exclusivamente a mulher, sobre o fato de que existem mulheres violentadas pelos companheiros quase diariamente e que os filhos que nascem dessa violência, reduzem sua força de trabalho e aumentam sua dependência do agressor. Não pode pensar sobre o fato de que são as mulheres pobres, negras e índias as que precisam da modificação da lei para não arriscarem perder suas vidas em práticas inseguras, posto que as de classe média e rica tem todo acesso garantido mesmo na clandestinidade. Não pode ouvir que o estatuto ético do embrião só foi comparado ao da criança pela igreja no final do século XVII e que antes disso ela se baseava na Suma Teológica de Tomás de Aquino, que inspirada em Aristóteles, descrevia que o concepto como tendo uma etapa vegetal (embrião) e finalmente uma fase animal (humana) que era quando ele começava os primeiros movimentos no ventre, sinal de que havia recebido a anima (alma), e que a própria bíblia estabelece o estatuto do embrião de forma distinta do da criança (Exodus, 21).
O resultado foi que nas semanas seguintes as pesquisas de opinião mostravam um aumento da recusa na modificação da lei de criminalização, o que é preocupante para uma sociedade que precisa se tronar mais tolerante com a diversidade e avançar nas liberdades individuais. Os fundamentalistas à espreita agradecem.
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* Cláudio Fortes Garcia Lorenzo é professor adjunto do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília, professor do Programa de Pós-Gradução em Bioética da mesma universidade e professor associado à Universidade de Sherbrooke, Canadá. Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal da Bahia, Mestrado em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia, com concentração em Bioética e Doutorado em Ética Aplicada às Ciências Clínicas pela Universidade de Sherbrooke. É o primeiro vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e membro da REDBIOÉTICA para América Latina e Caribe da Unesco. Tem experiência na áreas de Bioética e Saúde Coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: ética da pesquisa, bioética, medicina social e filosofia da saúde.
Fonte: http://www.unb.br 28/10/2010
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