sábado, 30 de outubro de 2010

Neurose de destino em tempos incertos

BRASIL DAS RELIGIÕES
Fiéis carregam imagem de santa em procissão de 
Nossa Senhora dos Navegantes e Iemanjá em Pelotas, em 2007

 
Abordagem religiosa de questões de saúde e de gênero expõe impasses do poder modernoUm inevitável sentimento de naufrágio nos atinge quando percebemos que países que historicamente constituíram um modelo de riqueza e poderio entram em crise, suas economias tremem, seus modelos políticos engasgam, seu equilíbrio social desanda. Se nos anos de 1920 foi a vez de a Grã-Bretanha perder o comando do mundo, hoje certamente não ficamos felizes (independentemente do pouco que viermos a gostar de Sarkozy) de ver as ruas de Paris invadidas – mais uma vez na história – pelas fogueiras das barricadas. Como também, seguramente, nos causou um recente dissabor ver a dignidade histórica da Grécia afundar nos labirintos da miséria financeira. Tampouco nos tranquiliza que uma das potências atuais – que se projeta como dominante num futuro próximo – desqualifique, para firmar sua arbitrariedade ideológica, o Prêmio Nobel da Paz concedido a um de seus presos políticos. No último triênio os efeitos de um “mal cálculo” na movimentação de juros e capitais nos negócios imobiliários da economia americana acabaram se estendendo como uma tsunami pelo mundo todo. Uma parte essencial dos Estados árabes, seculares guardiões das culturas e riquezas geradas pelas linhas milenares do comércio entre Oriente e Ocidente, transformou-se em Estados islâmicos (então, Estados de caráter confessional), passando a protagonizar violentos conflitos étnico-religiosos sem limites geográficos definidos.

"A angústia que emerge do distanciamento
entre as fontes de poder e as vias da representação popular
 – efeito político da globalização –
toma a forma de uma neurose de destino.
Nessas condições, o sujeito fica mais exposto ao controle de
suas escolhas morais por parte das instâncias religiosas:
 desafiar o que os deuses aprovam colocaria
 imaginariamente em risco seu destino"

A resistência dos Estados poderosos do mundo em reduzir significativamente as emanações de CO2; a instabilidade climática global provocando fenômenos meteorológicos surpreendentes e, de um modo geral, de consequências trágicas; a consciência popular de que um desmatamento na Indonésia ou uma queima de florestas na América do Sul não tange somente às condições ambientais daqueles que habitam nessas proximidades, mas que afeta a todos os habitantes da Terra. Enfim, que a globalização não consiste meramente em poder comprar chocolate suíço no Rio de Janeiro, Coca-Cola em Taiwan, ou um quimono em Madri, mas sim consiste em termos que suportar as consequências de decisões tomadas por governantes de outras latitudes – de cujas escolhas não participamos –, ou poderosos sobre cujas ações não temos ingerência. É vox populi que os governantes que formos escolher – seja na nossa cidade, no nosso Estado ou no nosso país –terão, inevitavelmente, de negociar seus programas de ação com instâncias internacionais mais poderosas do que eles e, ainda, de seus grupos de apoio. O desejo de mudar o que não funciona na nossa sociedade corre, então, todo o risco de tropeçar num cerco de limitações “globais” e acabar de cara num muro dos lamentos.

"A tramitação política incorpora hoje, então,
 a troca de fatias de poder por exigências morais.
A razão cede seu lugar à oração."

É natural, então, que um sentimento de incerteza tome conta de nós, sendo que, cada vez mais durante os últimos anos, diante do fracasso de influenciar a condução do mundo com nossas boas razões, tem acontecido de vastos setores da sociedade terem cedido à tentação de entregar a garantia de seu destino às entidades religiosas. Expandidas e multiplicadas pela migração da militância popular, elas se vêm facilmente catapultadas a recapturar para a religião o Estado que a modernidade transformou em laico. A tramitação política incorpora hoje, então, a troca de fatias de poder por exigências morais. A razão cede seu lugar à oração.
A angústia que emerge do distanciamento entre as fontes de poder e as vias da representação popular – efeito político da globalização – toma a forma de uma neurose de destino. Nessas condições, o sujeito fica mais exposto ao controle de suas escolhas morais por parte das instâncias religiosas: desafiar o que os deuses aprovam colocaria imaginariamente em risco seu destino. Questões como a prática do aborto, a utilização das células tronco, a união entre homossexuais, a transfusão de sangue, o divórcio, a iniciação sexual, a extensão do conceito de adultério, a monogamia ou a poligamia, o uso da burka, a proibição do uso de minissaias, de expor o corpo ao sol ou de namorar em lugares públicos (até mesmo a significação do termo “namorar”), a eutanásia médica, a determinação da morte por inatividade cerebral, são temas – entre outros muitos – que, considerados por um estado clerical não têm outra possibilidade senão se transformar em projetos de imposição legislativa seja de limite à ciência, seja de uma moral obrigatória independentemente da filiação cultural do sujeito que venha a suportá-la. O debate desaparece do terreno da razão porque entra nos domínios do dogma. Corre-se, então, o risco de que cada templo venha a exigir dos fiéis condutas públicas e políticas que acabem cultivando um clima de oposições entre crenças que deveriam ficar restritas ao exercício da vida privada.
Há 10 anos, escrevemos neste Cultura que Brasil era um raro caso de politeísmo bem-sucedido. Hoje nos vemos na necessidade de colocar tal postulado sob ponto de interrogação: Brasil, um caso de politeísmo bem-sucedido?
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* POR ALFREDO JERUSALINSKY, PSICANALISTA, MESTRE EM PSICOLOGIA CLÍNICA PELA PUCRS, AUTOR DE “QUEM FALA NA LÍNGUA?” (ÁGALMA, 2004)
Fonte: ZH online, 30/10/2010

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