quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Para pensar Albert Camus

Rubem Alves*

Imagem da Internet - Albert Camus

É a furiosa paixão de viver que dá sentido aos meus dias.
A respeito de um mesmo assunto, não pensamos pela manhã da mesma forma que à noite. Mas onde está a verdade, no pensamento noturno ou no espírito do meio-dia? Duas respostas, duas raças de homem.
Não há dignidade no trabalho, a não ser no trabalho livremente aceito. Apenas a ociosidade é que é um valor moral porque ela pode servir para julgar os homens. Só é fatal para os medíocres. É a sua lição e a sua grandeza. O trabalho, pelo contrário, destrói igualmente os homens. Ele não institui um juízo. Põe em ação uma metafísica da humilhação. Mesmo os melhores não lhe sobrevivem sob a forma de escravatura que a sociedade dos bem-pensantes agora lhe dão...
Céu de trovoada em Agosto. Aragem escaldante. Nuvens negras. No entanto, do lado o nascente, uma faixa azul, delicada, transparente. Impossível fixá-la. A sua presença é uma tortura para os olhos e para a alma. Porque a beleza é insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que desejaríamos prolongar pelo tempo fora.
Se ainda me oprime alguma angústia, é por sentir este momento intangível escorregar entre os dedos como as pérolas do mercúrio. Sou feliz neste mundo pois o meu reino é deste mundo. Nuvem que passa e instante que se desvanece.
Instante de adorável silêncio. Os homens calaram-se. Mas o canto do mundo eleva-se e eu, acorrentado ao fundo da caverna, sinto-me cumulado antes de desejar. A eternidade está ali e eu esperava-a. Agora posso falar. Não sei o que de melhor poderia desejar senão esta contínua presença de mim próprio em mim próprio. Não é ser feliz que desejo agora, mas apenas ser consciente. Julgamo-nos separados do mundo, mas basta que uma oliveira se projete no meio da poeira dourada, bastam algumas praias resplandecentes sob o sol matinal, para que sintamos dissolver-se em nós essa resistência. Dá-se o mesmo comigo. Tomo consciência das possibilidades de que sou responsável. Cada minuto de vida tem em si seu valor de milagre e o seu rosto de eterna juventude.
Mas os meus escritos sairão das minhas horas de felicidades. Mesmo naquilo que eles tiverem de cruel. Preciso escrever assim como preciso nadar, porque o corpo mo exige.
Se o tempo corre tão depressa, é porque não assimilamos com pontos de referência. Assim, da Lua ao Zénite e ao horizonte. É por isso que estes anos de juventude são tão longos por serem tão repletos, os anos de velhice tão curtos por já estarem organizados. Note-se, por exemplo, que é quase impossível olhar para um ponteiro enquanto ele gira durante cinco minutos sobre o mostrador, de tal forma a coisa é longa e exasperante.
A necessidade de ter razão, marca o espírito vulgar.
As filosofias valem aquilo que valem os filósofos. Maior é o homem, mais a filosofia é verdadeira.
Cada vez que ouço um discurso político ou que leio os que nos dirigem, há anos que me sinto apavorado por não ouvir nada que emita um som humano. São sempre as mesmas palavras que dizem as mesmas mentiras. E visto que os homens se conformam, que a cólera do povo ainda não destruiu os fantoches, vejo nisso a prova de que os homens não dão a menor importância ao próprio governo e que jogam, essa é que é a verdade, que jogam com toda uma parte de sua vida e dos seus interesses chamados vitais.
Jovem, eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente. Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras...
A vida é curta e é um pecado desperdiçar o tempo. Eu perco o meu tempo durante todo o dia e os outros dizem que sou muito ativo. Hoje é um momento de paragem e o meu coração parte ao encontro de si mesmo.
Se eu escrevesse aqui um livro de moral, teria cem páginas e noventa e nove estariam em branco. Na última, escreveria: “Eu apenas conheço um único dever, que é o de amar”.
O mundo é belo e tudo está nisso. A grande verdade que ele pacientemente ensina, é que o espírito não é nada nem o próprio coração. E que a pedra que o sol aquece, ou o cipreste que se faz ver no céu descoberto limitam o único mundo no qual “ter razão” adquire um sentido: a Natureza sem homens. Este mundo aniquila-me. Leva-me até ao fim. Nega-me sem cólera. E eu, aquiescente e vencido, encaminho-me para uma sabedoria onde já tudo está conquistado — se as lágrimas não me subissem aos olhos e se este enorme soluço de poesia que me enche o coração não me fizesse esquecer a verdade do mundo.
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* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online,Publicada em 26/10/2008 - acesso 20/10/2010

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