Morreste-me": três poemas e cinco textos sobre a morte e esperança cristãs
A obra, que inclui poemas de Daniel Faria, Fernando Echevarría e José Tolentino Mendonça, conta com a arte de Isabel Baptista, Manuela Bronze e José Rodrigues.
À semelhança do folheto, o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura adianta um excerto da brochura, começando pelo poema “Ilha dos mortos”, de José Tolentino Mendonça.
por degraus desiguais os mineiros,
os artesãos, as lavadeiras
lutam pela perfeição, lutam por Deus
em galerias remotas
as armas de caça vencidas
por ramos e arados
nenhuma morte é tão longa quanto a vida
diria quem pela primeira vez
visse debaixo de árvores sombrias
o sítio do mar, a porta das constelações
cem espantos possíveis
e no espanto uma esperança
o loureiro assinala a todos sua ciência negligenciada
címbalos, manuscritos e coroas
atiradas para o chão como vestimenta da batalha
insígnias do nosso posto de estrela em estrela
dão-nos sem nós pedirmos
ouvimos até sem querer
acima das arestas sombrias
a noite clara e os bosques
Esperança cristã (excerto)
Estranhamente, a luz ténue da esperança cristã apresenta duas facetas paradoxais, em relação à morte. Por um lado, surge como salvação da morte e, nesse sentido, como condenação da morte, enquanto o que de pior pode acontecer aos humanos – e que é experimentado, sobretudo, na morte do outro que amamos; por outro lado, o caminho da esperança cristã só é possível através da morte, isto é, depois de dita a penúltima palavra sobre nós, pois é essa palavra que coloca um ponto final na nossa vida terrena e, desse modo, torna essa vida completa – mesmo que, na nossa perspetiva, pareça estar sempre incompleta. Ou seja, cada um de nós só será ele mesmo, sem mais possibilidade de alterar a sua identidade, quando morrer, por mais breve que seja o seu tempo de vida. Assim, a morte é inevitável, não apenas de facto – todos sabemos que morreremos – mas, em certo sentido, de direito – somos seres biologicamente finitos e, para o «encerramento» do nosso processo de construção da identidade pessoal, temos que morrer.
"...para o «encerramento» do nosso processo de
construção da identidade pessoal,
temos que morrer."
Isso não significa, contudo, que tudo termine com a morte biológica. Com ela termina, é certo, algo muito importante, essencial; termina a vida em liberdade, que nos permite escolher ser o que seremos; e interrompe-se a relação com os outros, fundamento da construção da nossa identidade. Mas não termina, por completo e para sempre, a possibilidade dessa relação, como condição de vida. Abre-se, isso sim, uma outra dimensão da vida, em que o que somos e a nossa relação aos outros atinge um outro patamar de existência. É aí que se torna explícito – dentro dos limites da nossa compreensão – aquilo que nos é dado esperar, enquanto cristãos, para todos os humanos.
Na relação concreta com a morte, os conteúdos da esperança cristã poderão definir-se, antes de mais, negativamente. De facto, não esperamos que, na morte, apenas morra o nosso corpo biológico. A ideia de separação entre corpo e alma, na perfeita continuidade da alma, é apenas uma negação da morte. Com a morte, apenas morreria uma parte de nós, a menos importante. Mas nós mesmos, enquanto alma, continuaríamos alheios à morte. Em realidade, a morte não seria real, apenas aparente e apenas problemática para quem estivesse demasiado apegado ao corpo.
Mas, sem morte, não há ressurreição. Portanto, a esperança cristã não pode negar ou contornar a morte, enquanto tal. Antes a assume na sua problematicidade e dramaticidade. Só não a acolhe como trágico destino, sem saída nem solução. A «saída» oferecida, que é o núcleo da nossa esperança, é precisamente a ressurreição.
Mas é necessário precisar o que se entenderá por ressurreição. Mais uma vez, convém começar negativamente. Não é ressurreição o regresso à vida, a revivificação, pois isso é, simplesmente, regressar a uma dimensão novamente sujeita à morte – às numerosas mortes quotidianas. Também não é reencarnação, pois acabaria por significar o mesmo, no interminável ciclo das vidas mortais – que, além do mais, anulariam por completo a possibilidade de uma identidade pessoal. A ressurreição é a transfiguração de nós mesmos numa outra dimensão de nós, que é uma outra dimensão da vida. Essa outra dimensão não podemos nós próprios realizá-la – apenas podemos preparar-nos para a acolher ou para a recusar. Porque essa outra dimensão é a dimensão de Deus, em que seremos nós mesmos, por pura dádiva gratuita do seu amor. Aquilo a que a tradição cristã chamou céu não será senão essa dimensão de Deus, em que a força do seu amor será tudo em nós – e nada mais. Mas será tudo, em cada um de nós, considerado pessoalmente, como ser único e irrepetível, que construiu a sua identidade enquanto ser corpóreo, de carne e osso. Por isso, a ressurreição não é pensável sem referência ao corpo, que foi o lugar e a possibilidade da nossa identificação. E a dádiva imensa de Deus será acolhida, de acordo com a identidade de cada um, no respeito pela liberdade com que construiu essa identidade.
Por isso é que esperamos, também, que a vida na dimensão de Deus seja, ao mesmo tempo, uma vida plena, na relação aos outros, que supera a interrupção dessa relação, introduzida na morte e que, legitimamente, tanto nos faz sofrer. Na dimensão da vida de Deus, seremos dados à vida – uma vida diferente da que conhecemos biologicamente – para darmos a vida, tal como a demos, no nosso percurso terreno. Porque a dimensão do amor de Deus é a dimensão da doação plena, da dádiva completa de si. Se aceitarmos viver eternamente para os outros, teremos vida eterna, nesse dinamismo de doação sem fim e sem limite. (...)
"Chorar, amargamente, quem nos morre,
é um ato profundamente cristão.
Só não o será o desespero completo, perante essa morte.
Porque seremos salvos pela esperança.
A perdição seria o desespero, simplesmente."
Sem entrar em pormenores descritivos, porque seria impossível e mesmo insensato descrever essa dimensão da vida, a não ser metaforicamente, poderemos dizer que o conteúdo da esperança cristã ainda torna mais dolorosa a experiência da morte dos outros, sobretudo do próximo que mais nos toca. Porque se o sentido da vida é a vida para o outro, o maior absurdo está na interrupção dessa relação ao outro que nos morre. Chorar, amargamente, quem nos morre, é um ato profundamente cristão. Só não o será o desespero completo, perante essa morte. Porque seremos salvos pela esperança. A perdição seria o desespero, simplesmente.
Mas, qual o fundamento dessa esperança? Não se tratará de pura ilusão alienante? Que razoabilidade pode possuir o que nos anima? Não será mera construção humana, para responder a um desejo que não consegue satisfazer de outro modo?
É claro que não podemos demonstrar pelas ciências naturais aquilo em que esperamos. É normal que assim seja, pois a dimensão da vida que esperamos não se pode demonstrar por esses meios. Como não podem, aliás, muitas dimensões importantes da nossa existência, entre as quais sobressai o próprio amor, que torna a morte mais dramática ainda. Mas essas dimensões podem, isso sim, ser acreditadas, constituindo essa fé a base da nossa confiança e, por isso, da nossa esperança. É claro que não se trata de uma fé cega, simplesmente para contornar a dolorosa questão da morte. De facto, há motivos para crer, e esses constituem a razão da nossa esperança.
"...a ressurreição de Jesus, núcleo da fé cristã,
é o fundamento da esperança de
que seremos dados à vida, para além da morte,
numa outra dimensão da existência
– a dimensão plena de Deus."
Fundamentalmente, a base da nossa esperança é o próprio Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos e primogénito na nova dimensão da vida, precisamente porque viveu dando a vida, até à doação extrema da morte. Ou seja, a ressurreição de Jesus, núcleo da fé cristã, é o fundamento da esperança de que seremos dados à vida, para além da morte, numa outra dimensão da existência – a dimensão plena de Deus. Por isso, verdadeiramente só pode partilhar a esperança cristã quem partilhar a fé cristã. Uma é impensável sem a outra – assim como ambas são impensáveis sem a caridade, pois é na doação da vida ao outro que se realizam a nossa fé e a nossa esperança.
Aliás, Jesus Cristo não é apenas o fundamento primordial da nossa esperança, mas também o revelador da verdadeira relação entre os humanos e a morte. De facto, enquanto verdadeiro Filho do Homem, Jesus assumiu completamente a condição mortal dos humanos, sem com isso declarar a morte como algo bom. De facto, ela não deixou de ser o último inimigo, que só a dádiva da «vida eterna» pode vencer. Mas essa vitória é tudo menos triunfal. A vida de Jesus e o seu desfecho manifestam, claramente – embora paradoxalmente – que o caminho da verdadeira vida é o caminho que passa pela morte, sem lhe fugir de modo ilusório. Mas, ao mesmo tempo, essa passagem pela morte não é uma passagem qualquer. Ela mesma é, em Jesus, uma dádiva livre e gratuita da vida. E só essa dádiva possui força – que é a força de Deus – para vencer verdadeiramente a morte. Porque uma vida dada livremente pelo outro, na morte, faz com que essa morte não possa roubar-nos a vida, pois esta adquire eternidade, na medida em que é dada. Assim sendo, a ressurreição de Jesus, que constitui fundamento da nossa esperança, é uma ressurreição que coincide com um determinado modo de morte – a morte como doação da vida pelo outro e ao outro (e, neste, ao próprio Deus).
Mas, para além deste fundamento crente da esperança cristã, poderíamos considerar o que significa, humanamente, ser-nos permitido esperar que a morte não tenha a última palavra sobre nós. Tal como tão bem têm formulado muitos escritores e pensadores nossos contemporâneos – e mesmo nossos conterrâneos – a impossibilidade dessa esperança apenas nos conduz ao absurdo, ao sem-sentido completo de todos os nossos desejos e aspirações, assim como das nossas realizações. Nesse sentido, poderíamos dizer que é mais humanizante esperar para além da morte do que desesperar com a morte. E é essa esperança que nos dará coragem para acreditarmos no ser humano, apesar de tudo – apesar da morte.
_________________Fonte: Site português.
O excerto q vc leu é do folheto: "Morreste-me": três poemas e cinco textos sobre a morte e esperança cristãs. Os textos compostos por António Filipe Barbosa, Fernando Rosas, João Duque, José Nuno Silva e José Pedro Angélico incluídos nas 28 páginas do livrinho serviram de base aos conteúdos do folheto. No texto de apresentação, o diretor do Secretariado Diocesano da Pastoral da Cultura, Joaquim Azevedo, descreve os objetivos desta edição, que pretende “ser um instrumento útil para cada pessoa promover a desocultação da morte e do seu sentido, nas suas vidas quotidianas”.
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