Luiz Seabra criou o conceito de sustentabilidade na
indústria cosmética e pensa além da beleza
Fernanda Paola
Se ela nasceu da improbabilidade, como costuma falar seu criador, hoje não existe um brasileiro que não a conheça. A Natura, que começou em uma lojinha na Rua Oscar Freire, em São Paulo, em 1969, é hoje líder nacional no mercado de cosméticos. “Nós costumamos dizer que a Natura, na falta de capital, encontrou fundamento em duas paixões: pela cosmética, porque nos revelou uma linguagem que não havia antes, e pelas relações”, conta um dos grandes responsáveis pelo sucesso da marca, Luiz Antonio da Cunha Seabra. O atual copresidente de seu Conselho Administrativo recebeu a CULT para uma entrevista em seu escritório em São Paulo, em que a tônica foi não somente o lado empresarial, mas também a espiritualidade.
Convicto de que as ideias filosóficas e as tradições espirituais contribuem para ampliar os horizontes de compreensão da experiência humana, Luiz Seabra identifica a urgência de chegar a uma concepção humanista das relações entre as pessoas e entre elas e o universo. Essa urgência, no seu dizer, é sentida de modo especial no mundo dos negócios. Não se trata, porém, de instrumentalizar a filosofia e a espiritualidade, visando apenas aos interesses empresariais. Trata-se, antes, de chegar de fato a uma visão de mundo que valorize cada ser humano pelo que é e pelo que representa para os outros seres.
Seabra recorre, por exemplo, às teorias do pensador francês Teilhard de Chardin (1881-1955) para afirmar que cada indivíduo humano reflete o universo, e diz que, desde sua entrada no ramo da cosmetologia, esforçou-se por conceber o corpo como um “microplaneta”: um campo vasto de relações estabelece-se, tanto no que se refere a cada pessoa humana para com ela mesma como no que se refere às inter-relações pessoais e às relações com o todo.
Essas relações, por sua vez, abrir-se-iam para a transcendência do próprio mundo, saindo da mera horizontalidade e apontando para uma verticalidade onde se poderia buscar o sentido das coisas. Nesse aspecto, Seabra cita Plotino (205-270), para quem o sentido de tudo se dava pela busca e contemplação do uno. Em outras palavras, somente por um fundamento último, transcendente ao universo, é que ele parece ter sentido.
Essa é a perspectiva a partir da qual, nesta entrevista, Luiz Seabra, 68 anos, narra sua história e a história da Natura, analisa as angústias do ser humano, fala do momento atual vivido pelo Brasil e, como não poderia deixar de ser, reflete também sobre a beleza.
CULT – Conte um pouco sobre sua infância…
Luiz Seabra – Nasci em São Paulo, em uma família muito modesta. Meus primeiros sete anos foram ali perto da Sala São Paulo, antes de ela se transformar na sala bonita que é hoje, e depois eu fui para a Casa Verde. Morei lá até a altura do meu casamento. Meu pai era português, minha mãe filha de portugueses, e eu sou o segundo de quatro filhos.
Luiz Seabra – Nasci em São Paulo, em uma família muito modesta. Meus primeiros sete anos foram ali perto da Sala São Paulo, antes de ela se transformar na sala bonita que é hoje, e depois eu fui para a Casa Verde. Morei lá até a altura do meu casamento. Meu pai era português, minha mãe filha de portugueses, e eu sou o segundo de quatro filhos.
A Natura começou pequena…
Muito pequena. A Natura nasceu da improbabilidade, ninguém acreditava que ela virasse uma empresa. Eu acreditava porque era muito apaixonado pela forma como descobri a cosmética. Quando fui trabalhar com cosméticos, aos 25 anos, vinha de uma empresa multinacional, onde aprendi muito e onde tive uma ascensão meteórica. Uma das coisas que me preocupavam naquela empresa e nas grandes empresas, como eu podia observar, era o fato de que as pessoas ficam anônimas, são números que têm de produzir. Mas aquilo que as representa, a pincelada de alma que elas têm é absolutamente pouco significativa para a gestão das empresas. Isso me inquietava. Eu queria trabalhar em empresa pequena. Fui convidado para dirigir um pequeno laboratório de cosméticos, com poucos colaboradores.
Além de administrar a empresa, fazia parte das minhas funções comprar as matérias-primas e avaliar as fórmulas dos produtos. Avaliar não do ponto de vista técnico, mas saber o custo de cada uma delas para poder calcular e sugerir os preços que deveriam ter. Como a maioria dos meninos, eu tinha preconceito, porque cosmético é do âmbito feminino. Fui testando os produtos e pressenti uma linguagem que não era aquela que eu via sendo exercida no mundo. A ideia que as pessoas tinham de cosméticos não era aquilo que eu estava intuindo. Comecei a perceber que cosmético podia ser uma forma de as pessoas se comunicarem melhor com esse microplaneta que a gente é. Comecei a pesquisar como era a publicidade dos produtos e percebi quanto há de manipulação de estereótipos na linguagem praticada pela indústria da beleza no mundo.
Como nasceu essa percepção?
Um dos produtos que as mulheres queriam muito era o norte-americano da Herbal, que se chamava Eterna 27. Que esperteza, que belo nome, mas, o mais importante, transmite a ideia errônea de que alguém possa se fixar eternamente nos 27 anos. E o que me pareceu era que a minha vocação – que deveria ser vocação da empresa, se não da indústria como um todo – é justamente libertar as pessoas dessa ideia, dessa obsessão pela nossa efemeridade. E então tudo o que espelha a nossa passagem, por exemplo, o envelhecimento, angustia não apenas por um critério estético, mas pela angústia existencial de que esse é um dos arautos da morte. Isso é uma forma de escravidão. Aliás, a questão da libertação e das diferentes formas de ser escravo é essencialmente do âmbito da filosofia. Tem um título de um livro da Doris Lessing que eu vivo mencionando, que é Prisões que Escolhemos para Viver. Genial!
Quando percebi nos cosméticos a possibilidade de serem instrumentos de comunicação entre mente e corpo, tive a convicção de que a beleza não pode estar condicionada a um momento cronológico. Beleza tem a ver com a qualidade do olhar, com o olhar do outro, mas começa, sobretudo, com o olhar da gente sobre nossa própria vida. Foi assim que eu me apaixonei pela cosmética.
Voltando ao começo da Natura…
Eu estava havia pouco tempo naquele laboratório. Já estava para nascer meu quarto filho e eu tinha quase 27 anos. Pedi demissão e me ofereceram, então, sociedade na empresa. Eu disse que naquele laboratório eu não gostaria, mas sim se fosse algo que começasse comigo. Foi assim que nasceu a empresa que antecedeu a Natura. Meu sócio era nascido na França, filho do casal que me ofereceu a colocação no laboratório. O pai dele era um esteticista muito conhecido em São Paulo e de quem eu gostava bastante. Só que, decorridos poucos meses, seu Pierre teve um problema familiar e me pediu para que fechasse a empresa e voltasse a trabalhar com ele. Eu recusei. Conclusão: perdemos nosso único cliente, mal começada a empresa. Eu negociei com ele estoque para quatro meses e nós resolvemos procurar uma lojinha perto do instituto dele. Achamos uma ex-borracharia na Rua Oscar Freire, demos um banho de loja na lojinha, e foi assim que eu, da noite pro dia, me vi dando consultas para as clientes. Então, tive novamente de lidar com meus limites, minha timidez e algum preconceito. Foi o único jeito.
Nós costumamos dizer que a Natura, na falta de capital, encontrou fundamento em duas paixões: pela cosmética, porque nos revelou uma linguagem que não havia antes, e pelas relações. Descobri isso justamente entrevistando clientes.
Teve algum tipo de leitura que te influenciou?
Comecei a ler Teilhard de Chardin quando a Natura tinha uns 8 anos. Eu menciono com frequência uma fórmula da felicidade dele que me parece uma coisa maravilhosa. Ao encontrar a felicidade, o primeiro passo é que, apesar de todas as adversidades e dificuldades, a gente possa se voltar para o nosso interior e cultivar isso cotidianamente. O segundo passo é a descoberta do outro, em toda a sua adversidade e dignidade. Com a vida interior cultivada e com a descoberta do outro, que consiga encontrar uma razão para viver maior do que a própria vida. É uma fonte de inspiração muito grande. Eu fui também profundamente marcado por uma frase do Plotino que me emocionou quando eu tinha 16 anos: “O uno está no todo, o todo está no uno”. Deu um nó na garganta, achei que ia chorar e ao mesmo tempo tinha vontade de rir, fiquei muito comovido, sem conseguir explicar a frase. Muito cedo consegui um jeito de explicar alguma forma de entendimento que não passasse pela inteligência da cabeça e sim pela inteligência do coração.
O senhor havia estudado filosofia?
Continuo estudando, mas sou autodidata. Se você me perguntar que linha de pensamento prefiro, há muitas coisas que até podem ser contraditórias mas que me interessam e me encantam da mesma forma. Agora, tenho uma especial afeição por Plotino e por essa emoção que ele me ofereceu quando eu era tão criança.
O senhor estudou mitologia grega com Junito Brandão…
Você conheceu o Junito? Ele morreu em 1995. Lembro do momento em que eu recebi a ligação sobre a morte dele. Até escrevi um poemazinho baseado no sentimento que tive naquele momento. Foi com Junito que estudei mitologia grega e um pouco do pensamento clássico. Foi uma coisa profunda.
O senhor tem uma casa em Campos do Jordão com três templos: budista, xintoísta e católico. Qual é sua fé?
Fé religiosa eu não tenho. Crença não tem a ver com fé. Então, não tenho uma religião. Mas eu sou espiritualista e acredito na sequência desta vida. Agora o que pode e deve explicar a nossa vida é o fato de que todos nós fomos convidados a ela e poderíamos nos unir. Em vez de disputar em nossas individualidades, acho que todas as pessoas deveriam descobrir o dom da fraternidade.
Como consegue conciliar uma mente espiritualizada com a atividade pragmática de dirigir uma grande empresa?
A maior dificuldade no caso é dirigir a empresa. Mas eu sempre tive sócios, cada um voltado para o exercício de suas vocações. Então, pude dedicar à empresa certa capacidade de comunicação, que é minha vocação. A razão de ser da Natura e todo o elenco de crenças da empresa estão neste documento que vocês receberam, que não menciona nenhuma vez a palavra beleza.
É a visão de uma empresa sensível… Não houve momento de sofrimento no mercado? Momento em que essa sensibilidade ficou machucada com tanta concorrência, por exemplo, mas conseguiu manter seus valores?
Acho que o grande desafio que poderia ser considerado em alguns momentos como sofrimento foi passar pelas fases de grande crescimento e de presença forte no mercado, buscando sempre coerência entre as crenças e as imposições que esse crescimento traz. Porque alcançar escala e estabelecer processos essencialmente pragmáticos às vezes facilita um cotidiano essencialmente operacional, tendendo ao burocrático.
Então, mais do que ter convivido com concorrências às vezes muito árduas e gente que joga pesado, o mais difícil e dolorido foram os períodos de grande crescimento em que a gente precisava lutar para não deixar a burocracia invadir os corações e as cabeças dos nossos gestores e colaboradores, porque isso acontece.
A beleza jamais foi algo de absoluto e imutável, mas assumiu faces diversas segundo o período histórico, a cultura e o país. No futuro, quando analisarem o padrão estético em vigor no Ocidente dos séculos 20 e 21, o que dirão?
Pergunta interessantíssima porque ela vai me fazer pensar depois. Normalmente a gente avalia o que já foi. Mas eu tenho a impressão de que o que provavelmente mais vai saltar aos olhos no futuro serão todas as demonstrações da angústia dessa nossa civilização. Essa prisão do tempo cronológico, essa estereotipia toda, a obsessão com a forma. Eu acho que é isso que vai sobressair. Prometo para você que eu vou pensar no assunto para te dar uma resposta melhor.
O senhor morou em Paris e em Londres. Agora, está de volta ao Brasil. Qual a diferença entre viver na Europa e aqui?
Morei e vou explicar por quê. Quando eu cheguei mais ou menos na zona dos 40 anos, a empresa já era uma rea-lidade. Eu imaginava o que fazer da minha vida, como buscar outros significados além daqueles que são perceptíveis por aquilo que eu leio e pelo que posso perceber no meu cotidiano como empresário. Para mim ficou claro que a empresa protege a gente da própria vida. Eu não estou aqui para ser protegido da vida. Estou aqui para viver. Então, imaginei que, a partir dos 50 anos, iria viver esses períodos sabáticos, justamente para não ter a empresa com suas paredes bonitas e os olhares amáveis filtrando tudo. A primeira vez que isso aconteceu foi em 1994: fiquei sete meses morando na França, quando nasceu minha filha do presente casamento com a Lúcia, com quem estou casado há 23 anos. Casei pela primeira vez aos 22, fiquei casado por 16 anos, tive quatro filhos, fiquei solteiro por sete e aí casei com a Lúcia. Fomos para Paris, voltamos para o Brasil e, passados alguns anos, em 1999, fui para Londres. Voltamos, em 2005 fomos novamente e ficamos até 2008. Naquela ocasião, eu pensava que a gente ia ficar lá direto. Mas, em 2007, a Natura viveu certas situações aqui e me pareceu importante estar presente. Aí, em 2008, voltei para ficar.
Acredita que o Brasil está evoluindo, não só economicamente, mas no sentido humano da palavra? Quais seriam as soluções que o senhor poderia apontar para isso melhorar?
Estamos vivendo um grande momento econômico, que dispensa comentário. E eu penso muito naquela definição do Sérgio Buarque de Holanda em relação à cordialidade do brasileiro. Tem contida certa crítica à cordialidade até pela dificuldade de viver, pelos confrontos etc. Mas eu penso no lado iluminado da questão da cordialidade, da coisa do coração mesmo. Para que o futuro seja o mais iluminado possível, acho que a gente tem de definir melhor nossa vocação e cuidar da educação de forma séria, profunda, e que possa contemplar a questão da exclusão e da opressão. Há, em nosso país, por mais que desconheçamos, não só exclusão, mas uma opressão. Vencendo isso tudo, acho que o Brasil pode viver um futuro muito bonito. O mundo precisa desse tipo de luz. Em todo lugar aonde fui, senti que o modo de ser mais cordial e mais amigo do brasileiro emociona as pessoas. A vida é comandada pela falta, né? O mundo evolui por causa da necessidade. E eu acho que o mundo precisa desse tipo de calor derivado possivelmente da nossa cordialidade.
Como a filosofia e a espiritualidade podem ajudar a construir um país mais igual que supere essas dificuldades tanto econômicas quanto culturais?
Eu estou lembrando de uma frase que hoje cedo reli, que é justamente quanto a filosofia me parece fundamental porque ela, antes de mais nada, nos ajuda a viver. Depois, como derivação da ajuda do nosso viver, ela amplia a consciência. Ampliando a consciência, facilita a inovação. E, se amplia a consciência do empresário, ela é excelente para os negócios.
E a questão da ética?
Vale lembrar de outro filósofo que nós comentamos menos, que é o Epicuro. Normalmente, as pessoas falam de Epicuro no hedonismo. Nada tão distante do hedonismo quanto Epicuro, né? Ele tinha uma visão muito centrada na busca da felicidade pela ética e pelo convívio. Ele foi um grande filósofo da convivência. Eu sinto que, de alguma forma, junto com Plotino, Epicuro está muito presente.
O senhor tem temores?
Tenho. Tive temores concretos e às vezes… tem uma palavra que resume bem. Sabe ameaças impalpáveis? Esse tipo de coisa não é frequente, mas às vezes me ocorre. Por exemplo, o totalitarismo é uma ameaça à alma coletiva, à alma do mundo. Eu temo toda forma de totalitarismo, de pensamento único. Eu acho que são ameaças para o indivíduo e para a sociedade.
________________________Fonte: REvista Cult online - 15 de outubro de 2010
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