Rubem Alves*
Estou com medo. Nunca senti tanto ódio circulando entre o povo. A democracia se baseia na verdade e na razão: os cidadãos ouvem as propostas dos partidos e escolhem, por meio do voto, aquela que mais se harmoniza com os seus interesses.
Mas não é isso que vejo. Albert Camus disse que nunca poderia ser político porque ele era incapaz de desejar a morte do adversário. Então é isso?
É isso. O ódio ficaria feliz se o adversário morresse. Sinto os argumentos nos debates são tentativas de assassinato.
Acho que esse clima de ódio criará, no povo, feridas difíceis de serem curadas.
Resolvi, então, dirigir-me às crianças. Parece-me que os adultos entusiasmados, dominados por certezas, estão além da razão. Ah! Como essa coisa chamada “entusiasmo” é perigosa! Os ditadores sempre se apoiaram em seguidores entusiasmados. Se não houvesse os entusiasmados o nazismo não teria acontecido... Assim, resolvi dirigir-me às crianças. Para que elas não venham a cair na armadilhas desse câncer que é a paixão política. Escrevi então uma cartilha bem simples...
1) Somos uma democracia. A democracia é o melhor sistema político. É o melhor porque nele, ao contrário das ditaduras, é o povo que toma as decisões.
2) Em Atenas, berço da democracia, era fácil consultar a vontade do povo. Os cidadãos se reuniam numa praça e tomavam as decisões pelo voto. Mas no Brasil são milhares de cidades, espalhadas por milhares de quilômetros e os cidadãos são milhões. Não podemos fazer uma democracia como a de Atenas. Esse problema foi resolvido de forma engenhosa: os cidadãos, milhões, escolhem por meio de votos uns poucos que irão representá-los. O Congresso é a nossa Atenas...
3) Os representantes do povo, eleitos pelos votos dos cidadãos, vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores, presidentes, são pessoas que abriram mão dos seus interesses e passaram a cuidar apenas dos interesses do povo que representam.
4) É assim que dizem as teorias. Na prática não é bem assim...
5) No Brasil são muitos os partidos que, no frigir dos ovos, se reduzem a dois: o partido das raposas e o partido das galinhas.
6) As raposas, devotas de S. Franciso, sabem que é dando que se recebe. Assim, movidas por esse ideal espiritual elas dão milhares de cestas de milho para as galinhas.
7) As galinhas acreditam nas boas intenções das raposas e tomam esse gesto de dar milho como expressão de amizade. A abundância do milho as faz confiar nas raposas. E, como expressão da sua confiança nascida do milho elas elegem as raposas como suas representantes. Assim, na democracia brasileira, as raposas representam as galinhas.
8) Eleitas por voto democrático, às raposas é dado o direito de fazer as leis que regerão a vida das galinhas e das raposas.
9) As leis que regem o comportamento das raposas não são as mesmas que regem o comportamento das galinhas. Sendo representantes do povo precisam de proteção especial. Essa proteção tem o nome de “privilégios”, isso é, leis que se aplicam só a elas.
10) Privilégio é assim: raposa julga galinha. Mas galinha não julga raposa. Raposa julga raposa. Logo, raposa absolve raposa.
11) “Todos os cidadãos são livres e têm o direito de exercer a sua liberdade”. As galinhas são livres para serem vegetarianas e têm direito de comer milho. As raposas são carnívoras e são livres para comer galinhas.
12) A vontade das galinhas, ainda que seja a vontade de todas as galinhas, não tem valia. Vontade de galinha solitária só serve para escolher suas representantes.
13) Permanece a sabedoria secular de Santo Agostinho, aqui traduzida em linguagem brasileira: “Tudo começa com uma quadrilha de tipos “fora da lei”, criminosos, ladrões, corruptos, doleiros, burladores do fisco, mafiosos, mentirosos, traficantes. Se essa quadrilha de criminosos se expande, aumenta em número, toma posse de lugares, de cargos, de ministérios, da presidência de empresas e fica poderosa ao ponto de dominar e intimidar os cidadãos e estabelecendo suas leis sobre como repartir a corrupção, ela deixa de ser chamada quadrilha e passa a ser chamada de estado. Não por ter-se tornado justa mas porque aos seus crimes se agregou a impunidade.”
14) Portanto, galinhas do Brasil! Acordai! Uni-vos contra as raposas!
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fontte: Correio Popular online, 24/10/2010
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