quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O poder das igrejas de pautar programas dos candidatos

Editorial:
Imagem da Internet

Cada brasileiro tem a religião que quiser - isso é o que reza a Constituição do país e o torna laico. O Estado não interfere na crença religiosa do cidadão e as religiões, qualquer uma delas, não podem preponderar em questões do mundo político. A interferência de autoridades religiosas na política desequilibra a garantia constitucional de que todos os cidadãos são iguais, independentemente de credo, raça e cor. Se o Estado se rende às exigências de religiões, as demais serão menos iguais do que aquelas que fizeram valer a sua força junto ao poder político. Daí o Estado deixa de ser laico e passa a atentar contra o direito de todas as crenças, inclusive a dos que não creem.
Pelo fato de o Estado ser laico, o processo político obrigatoriamente tem de sê-lo. O segundo turno das eleições presidenciais avança ligeiro para a exploração de um assunto que é um tabu religioso, mas é também um assunto de saúde pública. A questão do aborto, ao que tudo indica, foi a grande contribuição das Igrejas Católica e Pentecostal na definição de mais um turno eleitoral. De um lado, as religiões foram tomadas, em vésperas de eleições, de um súbito poder de definir as posições dos candidatos em relação ao tema. De outro, os candidatos negam a realidade para não se indispor contra as religiões que mobilizam maior número de fiéis/eleitores.
Se a descriminalização do aborto fosse colocada na mesa do debate eleitoral sem a conotação religiosa a que foi guindada, os candidatos estariam discutindo uma situação real e dramática: uma brasileira morre a cada dois dias em consequência de aborto mal realizado - tecnicamente chamado de "aborto inseguro". Em 2009, 183,6 mil mulheres foram atendidas por complicações de aborto e fizeram curetagem. Pelas estimativas, para cada mulher que chega ao hospital público com complicações atribuídas a abortos inseguros, outras quatro também fizeram, não tiveram complicações e, portanto, não procuraram um serviço de saúde. Segundo pesquisa do Ministério da Saúde, uma em cada sete brasileiras de até 40 anos já fez um aborto. Pesquisa Nacional de Aborto (PNB) mostra que, dessas mulheres, 15% eram católicas, 13% eram evangélicas ou protestantes, 16% tinham outra religião e 18% não declararam religião. As informações são de "O Globo" de domingo.
A candidata do PT, Dilma Rousseff, sempre deixou claro que era favorável à descriminalização do aborto, inclusive porque a criminalização fecha as portas do serviço público de saúde a mulheres que podem morrer sem um socorro, após um aborto inseguro. O candidato do PSDB, José Serra, quando ministro da Saúde, normatizou os procedimentos do Sistema Único de Saúde em relação a esses casos.
Os dois estão empatados nessa questão. Mas a direção passional tomada pelo debate corre risco de colocar o aborto como único assunto relevante dessas eleições, e como um tema que deve ser abordado exclusivamente do ponto de vista religioso. A candidata do PT está sendo o principal alvo das Igrejas Católica e Pentecostal, e não por acaso seu adversário tem se aproveitado disso. Segundo pesquisa Datafolha divulgada na segunda-feira, 71% dos entrevistados são a favor de deixar a lei do aborto como está: permiti-lo apenas nos casos de a gravidez ser resultante de estupro e de a mãe correr risco de vida. Há um apoio maciço a uma lei que está longe de resolver os problemas de saúde pública que a questão encerra, mas aumenta de forma constante e sustentada, principalmente nas faixas de menor renda e menor escolaridade - eleitor potencial do PT.
Apenas 26 dias separam o país das eleições. É muito pouco. Nesse período, o país tem que saber o que os candidatos pensam de outros assuntos que não o aborto. As "pegadinhas" em torno do tema e a autonomia que os dois candidatos têm dado às igrejas para definir a agenda eleitoral podem impedir isso. E esse é um problema grave, mas está longe de ser o único. O Brasil andou bastante nas últimas décadas, mas ainda não é um oásis que possa se dar ao luxo de discutir só questões de caráter dogmático. A distribuição de renda melhorou, mas o país está longe de ser o campeão da igualdade; houve crescimento, mas não o suficiente para acolher todos os brasileiros e inseri-los no mercado de trabalho e de consumo; a saúde é universal, mas o acesso a ela é difícil. O Brasil ainda tem 10% de analfabetos na população acima de 15 anos, e 21,7% de analfabetos funcionais nessa faixa. O Estado, laico, tem que cuidar de todos. E os candidatos de um Estado laico têm que dizer como.
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Fonte: Valor Econômico online, 13/10/2010

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