Gaudêncio Torquato*
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“A identidade de idéias não liga no Brazil os homens, mas, sim, a identidade de interesses, donde resulta que a moral predominante é a especulativa”. A frase é do dr. Jaguaribe e o “z” do país mostra a grafia antiga, mais precisamente de 1889, impressa em seu livro Homens e Ideias.
O pensamento explica o clima do segundo turno desta que é uma das mais contundentes campanhas eleitorais da história, mais ainda porque o autor defendeu, em 1874, uma tese sobre “aborto criminoso e fraturas complicadas”.
O alerta feito pelo cearense Domingos Jaguaribe figura na agenda dos candidatos à Presidência. Uma citação de Sêneca ao final de sua obra parece até vaticínio: “Os vícios dos tempos antigos passam a ser costumes de hoje”. Basta conferir a estatística: uma brasileira morre a cada dois dias em consequência do que se chama de “aborto inseguro”. No ano passado, mais de 183 mil mulheres sofreram complicações por aborto e curetagem.
Desde o fim do século 19, o aborto faz parte da pauta da saúde pública no país. Desconsiderar a gravidade da situação ou escamotear o tema, deixando-o à margem, constitui um gesto de desonestidade cívica, só explicável sob a régua da “moral especulativa”, que guia a identidade de interesses dos nossos atores políticos.
Nas últimas semanas, o assunto virou tabu. Quem se dispuser a discorrer sobre ele, mesmo inserindo-o na política de saúde pública, pode ser mal interpretado e ser considerado “contra a vida”. De uns tempos para cá, o aborto ganhou um foro extremamente emocional, e mais, passou a ser pautado pela ótica religiosa. Os limites entre Estado laico e religião não resistem às pressões dos exércitos que atuam na retaguarda dos credos.
A questão está mal posta. Para início de argumento, nenhum ser humano, negando sua própria condição, pode ser contrário à vida. A defesa de dogmas morais, por seu lado, não deve impedir que um tema, por mais polêmico que seja, possa ser abordado de modo objetivo.
A lei brasileira, aprovada por 71% da população, permite o aborto apenas nos casos de gravidez resultante de estupro e ante a ameaça de a mãe correr risco de vida. Ser favorável a esse estatuto não significa aprovação de “mortandade de criancinhas”. Uma coisa é defender políticas públicas de apoio à saúde da mulher, outra é disfarçar o debate em torno da questão com apelos e mensagens subliminares que induzem o eleitor a imaginar determinados candidatos como a encarnação de Belzebu.
O mesmo argumento serve para desfazer o mito da privatização. Um dos maiores feitos do Brasil contemporâneo foi a privatização das telecomunicações pelo governo Fernando Henrique. Portanto, cada coisa no seu lugar. Se algum político muda sua visão a respeito do escopo da privatização ou do aborto, curvando-se ao sentimento maior da população, deve ser aplaudido. Ortega Y. Gasset ensinava: “Só os imbecis não mudam porque nascem com uma deficiência congênita”.
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* Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação
Fonte: Correio Popular online, 22/10/2010
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