RUBEN STERNSCHEIN*
O Brasil vive, atualmente, uma grande expectativa em relação ao próximo responsável por dirigir o país. Tal momento de análises e escolha do presidente nestas eleições 2010 nos permite identificar algumas interessantes indicações nas fontes judaicas. Isso porque acreditamos que o judaísmo fala de tudo e de forma relevante. Só precisamos das ferramentas de tradução para revelar as mensagens escondidas na barreira do tempo. A habilidade de ler o texto como metáfora permite resgatar ideias e valores muito além dos eventos históricos específicos.
Na época bíblica ainda não existia a democracia. No entanto, alguns de seus valores já poderiam ser identificados em suas leis, em alguns casos ainda com maior contundência do que são encontrados nos dias atuais. A lei era uma só e para todos: a Torá. Todos deviam conhecê-la, estudá-la e cumpri-la. E é desse ponto que se depreendem dois ideais democráticos muito importantes: a democratização da lei e do saber.
O rei, para garantir sua igualdade perante a lei, deveria ser ainda mais estrito em seu comprometimento. Nenhum rei dos judeus podia dizer frases como “o Estado sou eu”, “a Lei sou eu”. Também deveria fazer sua administração com extrema responsabilidade. No livro de Devarim, Deuteronômio, quando logo no livro do profeta Samuel o povo pede um rei humano, estabelece-se, entre outras limitações, a administração austera e transparente dos bens públicos. Mais uma vez se diz que o rei é um escolhido do povo, que é o povo quem de algum modo governa nele e sustenta o seu poder, e ele apenas os representa. Portanto, estabelecem-se algumas normas para garantir que o rei não faça mau uso da economia pública.
Dessa mesma época bíblica surge também outra característica exaltada em momentos como as eleições. Trata-se do perfil de liderança. O líder, além de estar sujeito e comprometido a cumprir o legado cultural do povo, é visto na Torá, antes de tudo, como um escolhido pelo povo. Vale enfatizar que o povo é o dono e o líder é quem o serve. E para desempenhar seu cargo com excelência, o líder precisa ser uma pessoa competente, deve ter liberdade e criatividade no pensamento e independência frente a interesses setoriais.
Mais além, para uma boa liderança, é preciso ter um sentido e compromisso extremo com a justiça, sensibilidade especial para conhecer a fundo cada um de seus governados e promover o melhor desenvolvimento pessoal de cada um deles em todas as áreas humanas.
Ainda nas Velhas Escrituras, em todas as oportunidades nas quais apareceram questões políticas e de poder revelou-se também o receio. Assim aconteceu na construção da Torre de Babel — que visava a atingir o céu para ganhar renome —, na diferença de liderança entre quem trabalha com animais e quem trabalha a terra, na comparação entre o profeta e o sacerdote, bem como na descrição do poder e limites do rei.
A partir desse receio, alguns comentaristas e estudiosos da Torá sugeriram que o ideal bíblico fosse uma forma de anarquia teocrática. A premissa é que a sabedoria divina esteja imersa em tudo e em todos. Todos podem conhecê-la e desenvolvê-la, e devem fazê-lo a partir de suas ferramentas pessoais. E, quando esse estado de desenvolvimento da humanidade for alcançado, todos conhecerão tão profundamente o bem, o justo e o correto, e a lei estará tão incorporada aos melhores valores, que não serão mais necessários governantes de nenhum tipo, nem juízes, nem polícias. Não haverá mais governados, não haverá mais governos. Existirá apenas o indivíduo na plena realização de todas as suas faculdades, em vínculo pleno com suas verdades divinas universais e pessoais.
Essa é a maior aspiração política dos sistemas de governos e lideranças que surgem das fontes judaicas. Talvez, mesmo que longe no passado por sua linguagem e longe no futuro em sua aspiração, as fontes judaicas possam iluminar nossas escolhas políticas de hoje.
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*Ruben Sternschein é rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP).
Fonte: Correio Popular online, 29/10/2010
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