Rubem Alves*
Imagem da Internet: Asterix & Obelix
Se eu fosse redator chefe, essa seria a manchete do meu jornal, na 2a. feira passada: “Povo unido ri e chora, esquecidas as diferenças.“ Foi isso que me emocionou. Não foi o Penta. O “Penta“ não passa de um lindo fogo de artifício que ilumina o céu por alguns segundos. Mas a alegria do povo, por coisa tão efêmera, isso me comove.
Entusiasmo ecumênico maior eu nunca vi. Católicos, evangélicos, candomblê, umbanda, protestantes e quantas religiões haja, todas, cada uma a seu modo, acendiam velas aos seus deuses, primeiro pedindo ajuda, e depois, ao final, por pura alegria... Não sei se os deuses ligam para essa tolice humana chamada futebol. Pois não é uma tolice? Uma brincadeira? Alegria porque uma bola passou uma linha branca? Que diferença na vida isso faz? Nenhuma. Mas o fato é que nós nos comovemos com tolices assim. Não me peçam explicações... Talvez os deuses liguem sim. Se eles forem do jeito como imagino eles se comovem com as emoções dos tolos corações dos seres humanos.
As emoções, riso e choro misturados, estão guardadas na alma do povo, à espera. Quando a ocasião chega elas se incendeiam como fogos de artifício, sobem aos céus assobiando e explodem em chuvas de estrelas. Os fogos de artifício se parecem com a alma... Gostaríamos de morrer daquele jeito, naquela exibição de potência, subindo aos céus assobiando, para terminar num orgasmo de cores que ejacula jatos de prata, fogo, estrelas e cometas...
O que o Chico disse na Banda se aplica direitinho:
“A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor...“
O velho fraco, a moça feia, o faroleiro, a moça triste, o homem sério, a meninada, todo mundo parou pra ver “a banda passar
cantando coisas de amor...“
Foi isso que aconteceu.
Uma coisa eu não entendo, acho que nem a psicologia e nem a psicanálise entendem: Como explicar esse fato incrível, que essa queima linda e efêmera de fogos de artifício possa provocar tanto entusiasmo nas pessoas e não haja entusiasmo que se lhe compare quando o que está em jogo são as questões sérias da vida real? Que causa provoca entusiasmo semelhante? A preservação da natureza? A educação? A luta política por uma sociedade mais feliz? A luta contra o crime?
Onde se encontra a emoção do futebol? Será na sua beleza? Sim, é bom ver uma partida que se parece com um balê. Mas esse espetáculo coreográfico não faz o torcedor feliz. Uma partida que termina zero a zero é um tédio. O grito vem quando o gol acontece. É no gol que mora a alegria e... o sofrimento... A alegria do torcedor cujo time fez o gol é simétrica do sofrimento do torcedor do time que sofreu o gol. Cada gol que se faz é uma afirmação de potência enquanto cada gol que se leva é uma afirmação de impotência. E o gol é, fundamentalmente, um ato sádico. Um estupro. Um gol é um time que enfia a sua bola no buraco do outro – dolorosamente - embora o outro tenha feito tudo para impedir que isso acontecesse.
A emoção do futebol, suas alegrias e tristezas, vêm do fato de que futebol é guerra. Uma copa do mundo é uma guerra estilizada entre muitos países. Daí a importância das bandeiras e dos hinos nacionais. Quem está em campo é um país em guerra contra um inimigo. A seleção são seus melhores heróis guerreiros, como na guerra de Tróia. O campeão é o vencedor da guerra. Os outros são os vencidos. Medalha de prata não tem graça. O vice-campeão é também um vencido.
O povo unido, esquecidas as diferenças, esquecidos os partidos políticos, esquecidas a crenças religiosas: todos sentindo igual, todos cantando igual, todos gritando ao mesmo tempo, uma única bandeira. O entusiasmo do futebol provoca a união. Essa unanimidade de sentimentos e ações é característica dos tempos de guerra. Diante de um inimigo comum que ameaça, os conflitos internos perdem o seu sentido. As esquerdas argentinas, inimigas da ditadura militar, se esqueceram da sua inimizade e se uniram ao povo e aos militares nas praças, quando as ilhas Malvinas foram invadidas. A guerra faz esse milagre: ela transforma as inimizades internas em amizade. Campeonato mundial de futebol é a guerra que dissolve todas as oposições internas. Imagino que até os inimigos do Felipão que o hostilizaram por causa do Romário, ao ver a seleção em campo se esqueceram da sua raiva, torceram por ela e gritaram a cada gol.
Mas o fim da Banda é triste.
“Mas para meu desencanto
o que era doce acabou,
tudo tomou seu lugar
depois que a Copa acabou...“
Terminada a guerra contra o grande inimigo, começam os conflitos entre os irmãos. Passada a Copa os torcedores tiram a camisa verde-amarela e cada um veste a camisa do seu time. Retorna, então, a guerra antiga...
Diante do perigo do gato os ratos se unem e sonham sonhos de fraternidade em que todos repartirão socialisticamente o queijo inacessível, guardado pelo gato. Morto o gato os ratos se esquecem da solidariedade socialista e começam a brigar entre si por causa do queijo.
O futebol é um jogo que ensina muito sobre as relações humanas porque todos os relacionamentos humanos são jogos. Faz tempo eu escrevi que as relações de um casal podem ser compreendidas segundo o modelo do jogo de tênis e o jogo do frescobol. O tênis: dois jogadores, duas raquetes, uma bola, o objetivo é tirar o outro da jogada, um ganha e o outro perde, um ri e o outro chora. Quem perde não fica feliz. Por isso quem perde sempre acaba por procurar um outro parceiro... Casamentos tipo tênis sempre terminam mal. O frescobol: dois jogadores, duas raquetes, uma bola, o objetivo é manter o outro na jogada, ou os dois ganham ou os dois perdem, ou os dois riem juntos ou os dois choram juntos. Nas duas possibilidades eles continuam amigos. Casamentos tipo frescobol são duradouros. Assim também acontece com o jogo de peteca: todos, na roda, batem a peteca para o alto, de forma a permitir que o companheiro bata também. Daí a regra: “não deixar cair a peteca...“
O filme Uma mente brilhante conta a história de John Nash, um matemático que ganhou o prêmio Nobel por haver colocado em fórmulas matemáticas um certo tipo de jogo econômico do tipo frescobol, isso é, um jogo baseado nas relações de cooperação e alianças, por oposição ao conflito e à destruição.
O futebol é uma combinação de tênis e frescobol. Em relação ao time adversário o futebol é tênis, guerra, o adversário tem de ser derrotado. Se eu não o derrotar, ele me derrotará: ou um ou outro...
Mas, para que o meu time derrote o adversário, é preciso que os seus jogadores joguem, entre si, o jogo do frescobol. Há de haver cooperação, entrosamento, harmonia. Ou todos ganham ou ninguém ganha: “um e outro“...
Pode acontecer – e frequentemente acontece – que um jogador seja roído pelo rato chamado “inveja“. E a inveja não consegue jogar o jogo da cooperação. A inveja instaura, então, o jogo da “sabotagem“. O objetivo do jogo da sabotagem é destruir o companheiro que me causa inveja (ele joga melhor, é mais bonito, é mais amado...) Assim, ao invés de lhe passar a bola para que ele faça o gol – ele está livre, sozinho diante do goleiro! – o invejoso prefere driblar os três adversários que se encontram à sua frente para ele fazer o gol e se transformar em herói. O resultado: ele perde a bola e o seu time perde a partida. O time perdeu a partida mas o invejoso está feliz: ele não deixou que o outro, que ele inveja, fizesse o gol... A esse tipo de jogador eu dou o nome de “sabotador“.
Há um ditado nas Sagradas Escrituras que diz: “Basta uma mosca para pôr a perder o pote de mel“. Eu digo: basta um sabotador para derrotar o próprio time. Nem precisa do adversário...
Os empresários e todos aqueles que lidam com grupos humanos deveriam estudar o futebol. Teriam muito a aprender. Toda empresa é um futebol, todo agrupamento humano é um futebol. Conselho: olho nos invejosos! Olho nos sabotadores. Não deixem que a mosca estrague o pote de mel... Se houver um sabotador, pode estar certo, sua empresa não ganha a taça...
***
A propósito do sabotador, sugiro uma leitura deliciosa: o número do Asterix que leva o nome de Cizânia. É sobre um sabotador verde que tem o nome de Tulius Detritus. Se você não está familiarizado com o Asterix, trate de familiarizar-se enquanto é tempo. No Juízo Final lhe será perguntado: “Leu o Asterix?“ Outro número do Asterix que deveria ser lido por todos os que trabalham em empresas é o Obelix & Cia.
__________________________* Teólogo. Educador. Escritor.
Fonte: (Correio Popular, 07/07/2002)
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