sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O romance como mundo

LUÍS AUGUSTO FISCHER *

Imagem da Internet

Pequeno teste: das três ideias a seguir, qual tem sido exposta por Mario Vargas Llosa (foto), o flamante Prêmio Nobel de Literatura? (a) Defesa da legalização das drogas para desmanchar o poder paralelo do narcotráfico; (b) condenação da ditadura cubana, como de quaisquer outras; (c) saudação ao desenvolvimento brasileiro dos últimos anos.
Resposta: todas elas.
Escritor de méritos há muito comprovados, liberal em política e cosmopolita na visão das coisas, Vargas Llosa é um maduro homem do mundo, e por isso mesmo sem a menor sombra de deslumbramento, solenidade ou mesquinharia. Na entrevista coletiva de ontem, aceitou comentar de tudo, desde trivialidades sobre como gastará o dinheiro do milionário prêmio (vai delegar a função a sua esposa, esperando dispor de um troco para comprar livros) até profundidades em torno do destino das jovens democracias latino-americanas (não crê na viabilidade de golpe contra a imprensa livre no Brasil, lamenta a mesquinha atualidade política argentina, elogia a prática democrática mexicana pós-PRI).
Ao ouvi-lo discorrer com tanta serenidade e clareza sobre temas nada simples como a política e a literatura, ocorrem perguntas comparativas: que outro escritor de nosso tempo saberia manejar massas de informações com destreza e perspicácia? Algum escritor brasileiro, em atuação ou já falecido, teria a capacidade panorâmica dele, que mantém em mente o curso histórico do subcontinente assim como o varejo contemporâneo dos países da região?
Não faz muito, outro escritor de língua neolatina e país periférico foi nobelizado e ganhou os holofotes da mídia planetária. Comunista, atento à sociedade mais do que à política, José Saramago pode então comentar amplamente o mundo. Vargas Llosa, escritor que saiu do gabinete para uma experiência forte (e frustrada) na política, dá auspicioso exemplo de relevância das letras no debate público.
São dois romancistas de talhe clássico: conhecem e praticam ousadias formais, mas concebem o romance como uma visada de conjunto, capaz de manter no centro das atenções um ou dois personagens e de conservar no campo de visão, por todo o tempo, o destino da totalidade. Não é coisa para poetas ou contistas, muito menos para narradores desconstrucionistas marcados pelo solipsismo (Houaiss: “doutrina segundo a qual só existem, efetivamente, o eu e suas sensações”).
Vargas Llosa parece ser de fato a última bolachinha de seu pacote; seu Nobel dignifica mais o prêmio do que o escritor.
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*Professor de Literatura Brasileira da UFRGS
Fonte: ZH online, 15/10/2010

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