quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Conversa na Catedral

Juremir Machado da Silva*


Crédito: ARTE PEDRO LOBO

Em entrevista ao jornal El Pais, Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel da literatura de 2010, disse estar experimentando "a maravilha de sentir-se querido". Terá Llosa se sentido desprezado algum dia? Certamente não como escritor. Como político. Seu mais deslumbrante livro, na minha opinião, "Conversa na Catedral", começa simplesmente assim: "Da porta de La Crónica Santiago olha a Avenida Tacna sem amor: automóveis, edifícios irregulares e desbotados, esqueletos de anúncios luminosos flutuando na neblina, o meio-dia cinzento. Em que momento o Peru tinha se fodido?". Só os realmente grandes começam com tanta simplicidade um romance genial.
A resposta à pergunta do personagem poderia ser: no momento o país preferiu Fujimori a Vargas Llosa. Só que isso foi depois. Seria, quem sabe, a segunda vez ou, mesmo, a enésima vez. Quantas vezes - se permitem que eu use esse palavrão, afinal estou apenas seguindo um Nobel - os países da América Latina se foderam? A Catedral é um bar. É nele que se dá o encontro de dois personagens ao mesmo tempo tão distantes e tão próximos. Eles passam a limpo um passado sujo que confunde história pessoal e nacional. É toda a podridão da América Latina, alimentada pela podridão da política externa norte-americana da época, que escoa ao longo da conversa que pontua o romance. Um inventário de uma ditadura, síntese dos regimes de exceção que assolaram essa triste América Latina, relatório de sonhos falidos e utopias mortas.
Mario Vargas Llosa palestrará hoje em Porto Alegre. Ficarei em casa relendo "Conversa na Catedral". Talvez passe horas examinado as linhas finais desse livro que leio desde quando era estudante de jornalismo e de história, nos anos 1980, na PUCRS: "Trabalharia aqui e acolá, talvez qualquer dia houvesse outro surto de raiva e ele seria chamado de novo, e depois aqui e acolá, e depois, bem, depois já estaria na hora de morrer, não era, menino?". Muitas vezes, romanticamente, eu me via na pele de Zavalita, o menino a que se refere Ambrosio, funcionário de um canil, nessa fala derradeira. Eu pensava em nossas fantasias e imaginava que elas se esfacelariam contra o muro da realidade logo na esquina.
De certo modo, eu perguntava por antecipação: "Quando foi que as nossas utopias se foderam?". O problema é que eu mesmo não as tinha. Brincava de anarquista. Mas a melancolia de Zavalita me contaminava como se eu fosse um Fernando Gabeira voltando do exílio. Hoje, mais para o velho Ambrosio do que para o jovem Zavalita, sei que a minha utopia não era política. Talvez caiba em relação a ela a mesma indagação. Continuo achando que a pergunta inicial de "Conversa na Catedral" é uma das mais geniais já feitas numa obra de arte. A resposta, pelo jeito, é uma só: quando os europeus botaram o pé na América. Se o paraíso existiu, nunca mais voltaremos a ele. Paraíso agora são as obras de escritores como Mario Vargas Llosa. Motivos literários não faltam para ele ser querido.
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* Filósofo. Escritor. Colunista do Correio do Povo
juremir@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo online, 14/10/2010

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