História:
Jornalista chega ao Rio em 1889,
não encontra sinais de "revolução" e
começa a fazer a crônica
de um país "doce" e "triste".
acervo iconographia
Pedro II embarca para Paris após a proclamação da República:
"O povo, cansado dos longos anos de um governo paternalista e anárquico,
assistiu passivo, quase sem entender, a esta cena rápida"
O jornalista francês Max Leclerc ficou dois meses no Rio de Janeiro. Foi enviado, em dezembro de 1889, para escrever sobre a recém-instalada República, pelo "Journal des Débats", de Paris, que, com "Le Temps" e "Le Figaro", era um dos diários mais influentes da França. Suas crônicas foram publicadas - com pequenas alterações - em forma de livro, traduzido e anotado por Sérgio Milliet com o título "Cartas do Brasil", publicado pela Editora Nacional, na coleção Brasiliana, em 1942. Essa edição está esgotada há décadas. A edição original, de 1890, foi reimpressa nos Estados Unidos em julho deste ano. A leitura é absorvente.
Segundo a "Histoire Général de la Presse Française", a redação do "Journal des Débats", de centro-esquerda, era de uma qualidade realmente excepcional, e sua leitura menos enfadonha que a da maioria dos jornais da época. Publicava artigos longos e densos, mas seu estilo e a firmeza de seu pensamento permitem encontrar, ainda hoje, um vigor e uma clareza que o tempo não enfraqueceu inteiramente. Acrescenta que seu testemunho é essencial para compreender a evolução do pensamento político do período.
Leclerc tinha 25 anos quando partiu para o Brasil, em 5 de dezembro, três semanas depois de proclamada a República. Ele conseguiu embarcar no navio La Plata, que se dirigia a Montevidéu e Buenos Aires. Os passageiros argentinos protestaram indignados quando descobriram que o navio pararia no Rio, conhecido como "a capital da febre amarela", para descarregar a mala postal, mas sem aproximar-se do porto. Temiam ficar dez dias de quarentena em Montevidéu e tentaram impedir que Leclerc desembarcasse. Ao chegar ao Rio, foi colocado, com a ajuda do capitão, no barco da correspondência, "como uma carta postal".
Ao chegar, procurou vestígios da "revolução" que implantou a República. No entanto, "sob o charme do magnífico panorama da baía, sob a luz chocante que envolvia o movimento do porto", nas ruas estreitas e animadas, povoadas de pessoas de figuras alegres, de rostos risonhos e abertos, casas com fachadas de cores brilhantes, não encontrou nada de trágico no ar, nenhum indício de republicanismo nas ruas. Mas foi só abrir um jornal para que a questão política aparecesse.
Ele carrega as tintas a respeito do clima, que qualifica de "mortífero". Diz que, para o europeu, no verão, o sol acachapante tira até a vontade de olhar ao redor; a luminosidade é crua, violenta e ofende a retina. Mas observa corretamente que, num clima que pode chegar a 40 graus à sombra, os brasileiros vivem e se vestem como europeus. Trabalham nas horas mais quentes do dia, passeiam com sobrecasaca preta e altos chapéus, e se impõem esse martírio com a mais perfeita indiferença.
Mas diz que os europeus que viram o Rio no inverno poderiam criticá-lo de ser injusto. O Rio que ele conheceu era uma cidade de ruas estreitas, casas de pobre aparência, sujas de poeira e lama; as calçadas quebradas e esburacadas, como se tivesse passado um furacão. Os rostos das pessoas carregam com frequência o sofrimento que o clima impõe às constituições mais robustas. Observa que a prefeitura não se preocupava com o saneamento da cidade, periodicamente assolada pela febre amarela - as reformas saneadoras do prefeito Pereira Passos só chegariam no começo do século XX.
"O traço dominante do caráter nacional
é uma grande doçura banhada de melancolia;
doce e triste, este é o brasileiro"
Segundo ele, os acionistas europeus de um banco com capital elevado ficariam chocados se vissem que no Rio funciona numas instalações nas quais se recusaria a trabalhar um boticário de uma cidade de terceira categoria. No mais importante logradouro dos negócios, a rua do Ouvidor, as pessoas ficam imprudentemente expostas ao sol numa hora em que até na Índia, sabiamente, se faz a sesta. Isso leva à mais chocante característica brasileira, a indolência. E ao seu reverso, os costumes doces e humanos, com horror à violência. Acrescenta que o brasileiro é cordial e hospitaleiro - um predecessor do "homem cordial", de Sérgio Buarque de Holanda.
"O traço dominante do caráter nacional é uma grande doçura banhada de melancolia; doce e triste, este é o brasileiro", diz. Mas também observa uma apatia de caráter; uma apatia universal, irresistível, além de uma falta chocante de hierarquias, de respeito, de disciplina social. O brasileiro é de uma inteligência viva e ágil e de um certo desdém pelas coisas sérias e pelas ideias de longo prazo; pouco dado à leitura, e os poucos livros que lê não são para mobiliar seu espírito nem temperar seu caráter: "Nada há mais raro que um caráter neste país." É muito comum encontrar homens pacientes, perseverantes, laboriosos, mas que esperam mais das circunstâncias do que deles mesmos.
Leclerc destaca também a amabilidade geral e a informalidade. Podia-se entrar, em alguns segundos, na sala de qualquer redator-chefe de jornal, ou de um importante banqueiro ou rico comerciante, sem que ninguém o impedisse. Disse não conhecer país com as classes tão misturadas, mas com títulos tão pomposos. O número de pessoas "ilustres" é incalculável. As manifestações de amizade, alegria, de entusiasmo são demonstradas de maneira exuberante. Mas observa que as mesmas pessoas que beijavam chorando as mãos de d. Pedro II hoje se prostram diante da égua de Deodoro.
A monarquia, diz, caiu como fruta muito madura. Ninguém levantou um dedo para protestar. Os próprios chefes do movimento ficaram chocados ante a facilidade com que abriram a porta que pensavam estar trancada. Segundo as pessoas, "aconteceu sozinho". "O povo, cansado dos longos anos de um governo paternalista e anárquico, assistiu passivo, quase sem entender, a esta cena rápida." Essas observações lembram as "Cartas do Rio", do jornalista Aristides Lobo, no "Diário Popular" de São Paulo, dizendo que "o povo assistiu àquilo bestificado".
O brasileiro é de uma inteligência viva e ágil
e de um certo desdém pelas coisas sérias
e pelas ideias de longo prazo;
pouco dado à leitura,
e os poucos livros que lê não são para mobiliar seu espírito
nem temperar seu caráter
Acrescenta Leclerc que o povo brasileiro, dado à emoção, à alegria tanto quanto à dor, versátil e sincero, lamentou que o imperador, cuja figura venerava, ao qual estava ligado por um velho hábito, fosse constrangido, ele, tão tenramente vinculado a seu país, ele, tão brasileiro de coração, a passar seus últimos dias no exílio; esse mesmo povo pôde, no dia seguinte, com não menor sinceridade, aclamar a República e seus líderes.
Leclerc traça um rápido perfil de d. Pedro II. "O respeito pela pessoa do venerável soberano", escreveu, "permaneceu intacto, mas o respeito pelo trono, pela prerrogativa imperial, ficou profundamente abalado."
Leclerc aponta as contradições do sistema político no império. A Constituição copiava o sistema parlamentarista inglês e o princípio federativo americano; e a administração se regia por normas do direito administrativo francês. Mas as circunstâncias brasileiras eram diferentes, sem as tradições que justificavam aquelas instituições. Em crítica ao arcabouço político, disse que a opinião pública no Brasil não teve ocasião de tomar consciência de si mesma, de manifestar-se e orientar-se.
Do governo provisório, instaurado enquanto se preparava a nova Constituição, afirma que legiferava por decreto, sem controle, propenso a esconder as notícias desagradáveis. Inseguro, decretou o estado de sítio e instaurou uma ditadura de fato. O novo regime enfrenta sérias dificuldades, disse Leclerc, e ninguém pode condená-lo antes de ver como funciona. Mas o exercício de um poder tão amplo, por homens pouco habituados a governar e sem contato com a opinião pública, não estava isento de perigos. Reconheceu, porém, que o governo estava dando provas de uma moderação relativa. Sobre o corpo eleitoral do império, de apenas 220 mil pessoas, 1,5% da população, disse que era o mais restrito do mundo, e aplaudiu a mudança da lei que ampliou o número de eleitores.
Ele passa uma percepção favorável do presidente da República, o marechal Deodoro da Fonseca, um homem simples, talvez algo brusco e de educação rudimentar, mas dotado de bom-senso, que não conseguia falar corretamente o português. Deodoro foi considerado "o chefe natural dos descontentes" no fim do império. Ele só quis provocar a queda do gabinete do visconde de Ouro Preto e, para sua própria surpresa, derrotou o regime: em lugar de derrubar um ministro que detestava, derrubou também um soberano que amava. "Deodoro deve ter sofrido em sua alma de soldado leal", escreveu Leclerc. Dizia-se que sentia remorsos, alimentados pela sua mulher. Assumiu a presidência doente e enfraquecido. Às 3 da tarde de 15 de novembro, feita a "revolução", desceu do cavalo e foi para a cama. As reuniões do ministério eram feitas em sua residência particular. Apesar de apresentar uma figura simpática, deixa claro que o presidente não tinha condições de governar.
Menos atraente é a figura de Quintino Bocayuva (como se escrevia na época), ministro das Relações Exteriores e segundo vice-presidente da República. É descrito como "aparentemente polemista brilhante", "o príncipe dos jornalistas brasileiros". Elogia seu espírito honesto, elevado e correto e diz que lutava corajosamente para manter sua numerosa família. Mas era também "frio, altivo, solene; um doutrinário com os gostos de um aristocrata. Nada é suficientemente bom para ele, nenhuma honraria é excessiva, nenhum gasto desnecessário". Assim que assumiu, partiu no maior navio de guerra da Marinha para a Argentina, onde seria recebido como jornalista revolucionário e inimigo furioso da monarquia. Já então, diz Leclerc, a "fraternidade americana" fazia correr muito champanhe, tinta e discursos.
Diz que Ruy seguramente tem muito talento,
vontade de trabalhar e boas intenções,
mas sofre de isolamento moral,
deixa à solta sua inspiração e não ouve conselhos.
"Baixo, nervoso, irritadiço e autoritário. (...)
À vista desta enorme cabeça sobre um corpo franzino,
destes olhos ardentes,
estes gestos exaltados,
parece que este homem esteja continuamente cheio de ideias e
seu cérebro a ponto de explodir."
Leclerc é extremamente crítico de Ruy Barbosa, ministro da Fazenda e primeiro vice-presidente, e de sua política econômica, talvez por ouvir um grande número de homens de negócios e banqueiros prejudicados pelas suas reformas. A imagem que ele passa é bem diferente da impressa nos livros de história. Diz que Ruy seguramente tem muito talento, vontade de trabalhar e boas intenções, mas sofre de isolamento moral, deixa à solta sua inspiração e não ouve conselhos. "Baixo, nervoso, irritadiço e autoritário. (...) À vista desta enorme cabeça sobre um corpo franzino, destes olhos ardentes, estes gestos exaltados, parece que este homem esteja continuamente cheio de ideias e seu cérebro a ponto de explodir."
À apreciação de Ruy sobre a situação das finanças não falta um certo mérito literário, diz, mas é mais a obra de um jornalista que de um homem de Estado. "Ainda não entrou na pele de sua nova personalidade". Reconhece nele o polemista brilhante e incisivo, mas afirma que decepcionou quem esperava dele provas de "statesmanship". Compara-o, de maneira desfavorável, com o último ministro dessa pasta no império, o visconde de Ouro Preto, que reorganizou o Tesouro e o deixou numa situação próspera.
Quando Ruy Barbosa divulgou no "Diário Oficial" o decreto sobre "Emissões e Crédito", mudando abruptamente todo o sistema financeiro do país, Leclerc fez uma crítica devastadora. "O espírito fica confuso ao pensar que um ministro, que se diz 'republicano', tenha ousado, sem ter reunido uma única vez uma comissão de homens competentes, ele, homem de Estado durante apenas dois meses, mudar completamente com uma penada, todo o sistema econômico do país". Leclerc escreveu que Ruy Barbosa teve que recuar em boa parte das medidas: "Seu sonho não durou quinze dias".
Segundo Leclerc,
o principal dever da recém-constituída República era
"a educação do povo brasileiro,
para que possa governar-se a si mesmo:
é uma organização cara e delicada para criar".
Mostrou também as manobras de enriquecimento de "M. Mayrink, um brasileiro de origem holandesa", que gostava de fazer negócios muito arriscados. (O conselheiro Francisco de Paula Mayrink, banqueiro e homem de negócios, era considerado o homem mais rico do país e orientador da política financeira do governo provisório). O decreto de Ruy anunciava a criação de bancos privados de emissão de moeda, com capital de 500 mil ações; Leclerc diz que 400 mil estavam em nome de Mayrink, dos amigos de Mayrink, dos parentes de Mayrink, de bancos em que Mayrink era presidente e um bom número de ações em nome de um porteiro de um dos bancos de Mayrink.
"O Comtismo ortodoxo, que estava morrendo na Europa,
ressuscitou no Brasil,
carregado de ouropéis brilhantes e
de atributos ridículos"
No antigo regime havia acusações de favoritismo e nepotismo, coisa que os republicanos não mostraram muita vontade de mudar. Assim como não houve preocupação em restabelecer a ordem e a disciplina na administração pública ou em reduzir as despesas inutilmente suntuosas ou em reformar os procedimentos do governo. Ninguém prevalece contra os interesses dos homens de negócios, dos comerciantes, dos industriais, dos fazendeiros, nem contra a inércia do povo brasileiro, diz Leclerc.
A respeito do ensino, afirma que "nesta sociedade governada pelos interesses materiais de uma oligarquia de grandes proprietários de terras e exploradores de escravos os interesses morais do povo não foram jamais atentamente considerados nem seriamente defendidos". O ensino primário era negligenciado. A instrução secundária era menos sacrificada, mas apesar de programas bem recheados e que agradam ao olho, graças à mediocridade dos docentes, à indolência dos alunos e ao relaxamento da disciplina, os resultados eram medíocres. Todos os esforços eram orientados para o ensino superior. Ricamente dotado, provido de laboratórios, bibliotecas, museus, somente foi bem-sucedido em fabricar desclassificados: a estrutura era muito pesada e ornada para as bases frágeis e mal construídas que deviam suportá-la. O estudante, insuficientemente preparado, sem conhecimentos sólidos, assimila mal a ciência que lhe é ensinada nas faculdades. Os formados por elas eram pretensiosos, falsos doutores e "bacharéis" que usavam sua ciência de pacotilha num povo de iletrados. Alguns desses "bacharéis", intoxicados pelo abuso de um licor demasiado forte para seus cérebros de neófitos, perderam o equilíbrio e se lançaram sobre as filosofias mais místicas e obscuras. O Comtismo ortodoxo, que estava morrendo na Europa, ressuscitou no Brasil, carregado de ouropéis brilhantes e de atributos ridículos. (Esse "comtismo" mal digerido teria como uma das manifestações o Apostolado Positivista do Brasil, que, 15 anos depois da viagem de Leclerc, se opôs à vacina contra o cólera porque não passava de um "envenenamento consciente da espécie humana através do pus de vaca".)
Segundo Leclerc, o principal dever da recém-constituída República era "a educação do povo brasileiro, para que possa governar-se a si mesmo: é uma organização cara e delicada para criar".
Depois da viagem ao Rio, Leclerc voltou a Paris e continuou escrevendo para o "Journal des Débats". Ele tinha estudado na Inglaterra e na Alemanha e voltou lá como jornalista. Esteve também nos Estados Unidos, como correspondente. Escreveu livros sobre esses países. No fim da vida, editou os "Annales de Géographie". Antes de vir ao Brasil esteve no Marrocos, também pelo jornal, e escreveu outro livro.
As cartas de Leclerc revelam um olho crítico, mas compreensivo, uma grande capacidade de observação e perspicácia, ao lado de opiniões controvertidas, generalizações algo forçadas. Ressentem-se de uma visão parcial do país, pois conheceu apenas o Rio e São Paulo, e de ter como fontes principalmente - segundo fica evidente pelo conteúdo - políticos, banqueiros, homens de negócios que falavam a língua inglesa, o que não os livrou de suas críticas. É um livro que vale a pena ler.
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Fonte: Valor Econômico online, 15/10/2010 Reportagem: Por Matías M. Molina Para o Valor, de São Paulo
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