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Obra de Ian Kershaw explica a trajetória do ditador nazista como produto das rupturas sociais e políticas da Europa
Hitler alimenta o imaginário popular como a encarnação do "Mal" absoluto. Essa percepção contamina boa parte da historiografia a respeito da Alemanha sob o ditador nazista, uma visão de resto muito conveniente para minimizar a responsabilidade - direta ou colateral - de boa parte da sociedade alemã e europeia no cataclismo da Segunda Guerra. A maioria das biografias sobre Hitler enfoca seus supostos distúrbios de personalidade e seu alegado poder de hipnotizar as massas para justificar seus crimes. Hitler, do historiador britânico Ian Kershaw, porém, vai no sentido oposto e coloca o ditador na perspectiva da desestruturação política da Europa desde o final do século 19.
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O biografado.
Terrível herói de um tempo que aceitou a destruição como a forma de redenção
A obra, lançada em dois volumes em 1998, enfim chega ao Brasil. Embora em versão reduzida, ela conserva sua relevância e comprova a originalidade de Kershaw - um medievalista que casualmente se tornou um dos maiores historiadores do nazismo. Em entrevista ao Estado, Kershaw diz que a essência de seu livro é a interação entre o ditador e a sociedade que o criou, mas, no limite, se não fosse Hitler, "os principais desdobramentos da história do nazismo teriam tomado caminhos diferentes, ou não teriam ocorrido".
O sr. costuma alinhar-se com a corrente estruturalista no debate sobre a historiografia da Alemanha nazista - isto é, na sua opinião, o nazismo não pode ser entendido apenas como resultado da vontade de um só homem, Hitler, ou não principalmente por causa dele. Como foi, então, a experiência de dedicar-se a contar a vida desse homem?
Eu nunca pensei, ou tentei sugerir, que Hitler fosse de pouca relevância para o destino da Alemanha. Pelo contrário, como tentei mostrar, sem Hitler a história teria sido muito diferente. No entanto, as interpretações que tentam atribuir a catástrofe da Alemanha e da Europa a pouco mais do que a vontade, as intenções e a ideologia de Hitler nunca poderiam, em minha opinião, ser consideradas satisfatórias. Foram cruciais as circunstâncias específicas e as estruturas que permitiram a Hitler chegar ao poder e exercer esse poder de forma desastrosa. A essência de meu livro é tentar entender essa interação do indivíduo e da sociedade. Nessa medida, a minha biografia equivale a mais do que simplesmente "contar a história de vida desse homem".
Ainda sobre a questão do gênero biográfico, não há risco em pesquisar a vida de Hitler apenas para descobrir os "sinais" do homem que acabaria por levar a Alemanha ao colapso da civilização?
Como a marca de Hitler foi o colapso da civilização na Alemanha, sua biografia é, obviamente, de importância crucial para entender essa evolução fatal, mesmo se as ações do ditador não sejam suficientes em si para explicar o que aconteceu.
O sr. sugere em seu livro que Hitler não tinha todo o poder que normalmente lhe é atribuído. Como em seu livro Hitler: um Perfil do Poder, o sr. nos apresenta um homem indisciplinado e preguiçoso, até mesmo medíocre. Só o carisma do Führer, portanto, explica toda a sua força?
"Carisma" tem de ser visto do modo como foi explorado pelo sociólogo alemão Max Weber, que sugeriu que as qualidades "carismáticas" são características menos de um indivíduo "excepcional" e mais de uma construção social - atributos concedidos a essa pessoa por seguidores em busca da "salvação" de uma grande crise. Na Alemanha, o "carisma" de Hitler foi, em boa medida, fabricado pela propaganda. Mas ela se tornou a base central do governo no regime nazista. É correto, portanto, observar que o poder de Hitler residiu na sua imagem "carismática".
O sr. afirma que Hitler "privatizou" a esfera pública, tornando o público e o privado essencialmente a mesma coisa. Em que medida essa estratégia ajudou a projetar o ditador nazista?
Isso não foi a consequência de uma estratégia cuidadosamente concebida, mas sim o resultado inevitável da imagem "carismática" que foi atribuída a Hitler. Significava, por um lado, que ele teve de se manter afastado das disputas políticas. Ao mesmo tempo, as posições de poder - que na maioria dos sistemas políticos são reguladas por agentes "públicos" - foram em grande parte dependentes de lealdades pessoais, "privadas", enquanto a entourage "privada" dos ajudantes de Hitler adquiria autoridade em assuntos públicos. Por outro lado, isso significava que a existência privada de Hitler mais ou menos deixou de existir, e ele se via constantemente obrigado a ser uma pessoa pública, exercendo, de manhã até a noite, o papel do "Führer".
Seu livro mostra que, sem a colaboração dos alemães "comuns", o nazismo não teria alcançado o tamanho que teve. Por outro lado, é possível dizer que o nazismo, em toda a sua extensão, poderia ter ocorrido sem Hitler?
Quanto a isso não há dúvida: Hitler encarnou, representou, ativou e legitimou as forças sociais e políticas que desencadearam o nazismo. Isso fez uma diferença crucial para o curso da história. Se fosse outro o líder dirigindo a sorte da Alemanha, os principais desdobramentos teriam tomado caminhos diferentes, ou não teriam nem ocorrido.
Em sua obra original, o sr. optou por usar as expressões "hybris" e "nêmesis" para dividir os períodos de ascensão e queda de Hitler. Essas expressões, retiradas de tragédia grega, ligam a destruição ("nêmesis") de Hitler à sua arrogância ("hybris"). Isso não seria uma visão teleológica, construída segundo a ideia da inevitabilidade da derrota de Hitler, ou um tipo de justiça metafísica?
Os historiadores têm poucas vantagens, mas uma delas é que eles sabem qual é o final da história. Isso não significa que ela deva ser contada teleologicamente. No entanto, sobre esse aspecto, é legítimo utilizar termos que remetam à essência da autodestrutividade do regime nazista. Os objetivos nazistas só poderiam ser alcançados - se é que podiam ser alcançados de qualquer maneira - conclamando-se uma imensamente poderosa coalizão de forças inimigas, com a intenção de destruir a Alemanha. Nesse sentido, esses objetivos eram autodestrutivos. "Hybris" e "nêmesis" parecem ser uma metáfora exata para descrever a arrogância do poder e da sua eventual queda.
No final da biografia, o sr. mostra que os restos mortais de Hitler, que se considerava o maior homem da história alemã, couberam em uma caixa de charutos. Quão grande foi Hitler, afinal?
Novamente, é preciso afastar-se da noção de que Hitler, pessoalmente, fosse uma espécie de titã, mesmo um titã negativo. Fora de sua própria época, ele era um indivíduo que provavelmente não deixaria marca na história - viveria e morreria na obscuridade total. Mas as circunstâncias lhe permitiram desempenhar um papel importante e decisivo na história. Seu impacto foi o maior produzido por um único indivíduo no século 20.
TRECHO
"Não há dúvida de que a atitude de Hitler em relação à escola e aos professores (com uma exceção) era...
...fortemente negativa. Ele deixou a escola "com um ódio elementar" dela e, mais tarde, zombava da educação e dos professores. Somente seu professor de história, dr. Leopold Potsch, foi agraciado com elogios em Mein Kampf por estimular seu interesse por narrativas vivificantes e histórias de heroísmo do passado alemão (que era predominantemente tanto em sua escola como na cidade de Linz de um modo geral). Os problemas de adaptação que Adolf encontrou em Linz se agravaram com a deterioração de suas relações com o pai e a ferida aberta pelas disputas sobre sua carreira futura."
_________________________Reportagem por: Marcos Guterman - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão online, 24/11/2010
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