Viver restrito ao mundo como ele é, sem poder imaginar nem sonhar nada.
Essa é uma definição de inferno para o psicanalista Mário Corso. Mas deste inferno ainda estamos a salvo: a possibilidade de fantasiar está no cerne do ser humano e permeia medos e desejos, dos mais vívidos àqueles que não ousamos admitir, permitindo-nos elaborar e interpretar a realidade. É justamente sobre como opera a fantasia e sobre como muitos de nossos sonhos e temores compartilhados ganham forma na ficção que versa o novo livro de Mário e de Diana Lichtenstein Corso, A Psicanálise na Terra do Nunca.
Em 14 ensaios, o casal de psicanalistas passeia por filmes, séries de TV e livros que marcaram época e oferecem ao leitor interpretações aprofundadas e análises originais das fantasias contidas em produções de grande apelo popular. Do seriado Os Waltons à saga Crepúsculo, eles interrogam-se sobre o que essas obras de sucesso têm a dizer sobre nós.
De um ensaio a outro, mantém-se o estilo fluido e instigante – como os próprios autores reconhecem, a sintonia é tamanha que é difícil ver onde começa a escrita de um e começa a de outro. A Mário, que cursou alguns anos de Engenharia antes de se tornar psicanalista, cabe a estrutura dos textos, que Diana vai preenchendo. Ou, como Mário diz: ele faz as vigas, ela coloca os tijolos.
Repetindo o feito do livro anterior da dupla, Fadas no Divã, o resultado dessa engenhosa construção é uma obra que excede o público especializado e se apresenta como um convite aos leitores leigos para se inquirir sobre suas próprias fantasias. Assim, Diana e Mário acrescentam mais um tijolo a outro projeto comum: mostrar mesmo àqueles que não frequentam o divã o quanto a psicanálise tem a dizer sobre cada um e sobre o tempo em que vivemos.
ENTREVISTA DIANA L. CORSO E MÁRIO CORSO
Zero Hora – Os ensaios de A Psicanálise da Terra do Nunca avaliam o que obras de ficção têm a dizer sobre nossos desejos, medos e fantasias. O que os guiou na seleção desses objetos de reflexão no vasto acervo da recente produção literária, cinematográfica e televisiva?
Diana Corso – Escolhemos obras que nos tocam, não há uma objetividade a priori. Às vezes, nos tocam porque a gente gostou. Às vezes, porque ficamos intrigados, como é o caso de Crepúsculo: é uma obra que não lemos por prazer, apesar de a leitura ter sido um pouco menos penosa do que imaginávamos.
Mário Corso – A gente entende que as obras são como sonhos coletivos, então não escolhemos as melhores, mas as que tocaram mais pessoas. Se têm apelo popular, é certo que dizem algo sobre a cultura de um tempo. Se tantas pessoas aderem àquela história, àqueles personagens, aquele sonho que está embutido quer dizer alguma coisa.
Diana – Algumas coisas entraram porque são paixões nossas. Borges é uma paixão minha de muito tempo. Tinha que estar, em especial porque o método dele, no qual mistura o escritor, a obra e seu leitor como uma coisa só, era fundamental para a concepção da fantasia que a gente tinha. Mas a maior parte dos textos que escolhemos foi por serem sonhos coletivos, mas sonhos que se sonharam em nós. E o que autoriza que a gente pudesse dizer alguma coisa sobre essas fantasias? O fato de que elas nos tocaram. O que nos faz acreditar que determinada associação ou determinada leitura pode ser suscitada por determinada fantasia de certa obra é porque a gente se sente tocado neste ponto específico por essa obra. Como quando fomos ver Toy Story 3 e voltamos totalmente tocados pelo tema, o fim da infância. Então, falamos sobre pontos pelos quais nossos calcanhares de Aquiles foram fulminados. Escrevemos enquanto pacientes e não enquanto analistas.
ZH – São essas fantasias compartilhadas, como a nostalgia de uma família perfeita, que nos ajudam a viver o presente?
Mário – Essas fantasias têm uma força maior agora, porque nosso presente é destituído de um campo de força ideológico de maior peso ou mesmo religioso, que padronizava certas fantasias: céu e inferno são linhas de tensão sobre fantasias, buscas e modelos. Não era incomum, anos atrás, o modelo de idealização ser um santo. O esvaziamento das utopias, das ideologias e das religiões faz com que a linguagem comum da nossa época sejam as obras disponíveis na nossa cultura. Não há outra coisa comum para se reconhecer. Já viu esses fenômenos de nostalgia precoce? Em uma livraria se encontram livros de nostalgia dos anos 1970 e 1980. A década de 1990 terminou ontem e já tem festas temáticas. São pessoas que se reconhecem pelo consumo de produtos culturais de uma época, até as propagandas e os brinquedos. Na falta de uma outra coisa, é isso que está refletindo um tempo.
Cultura – No livro, vocês destacam que, após a psicanálise, a família passou a ser vista de forma menos pueril. Mas, ainda assim, a idealização da família sobrevive. Essa idealização, óbvia na família perfeita de Os Waltons, aparece até em Os Simpsons: apesar de Homer encarnar o pai idiota, estampando a fragilização da figura paterna, por exemplo, permanece a exaltação da família como o espaço da compreensão, da ajuda mútua, de um vínculo indissolúvel. Por que esse ideal resiste?
Mário – Tem um livro maravilhoso do Christopher Lasch, sobre família, e cujo título já diz tudo: Refúgio num Mundo sem Coração. Ou seja é um único refúgio que a gente tem em um mundo cada vez mais atomizado, onde há uma crise dos espaços sociais e da cidadania, um mundo onde o social faz menos cola para o sujeito, então os espaços que restam ficam hipertrofiados – e um deles é a família.
Diana – Quando começamos a escrever, não imaginávamos que escreveríamos tanto sobre família. A ideia era explicar como opera a fantasia, e a melhor forma é mostrá-la funcionando. Começamos a buscar essas fantasias de apelo popular para interpretar e acabamos descobrindo que a maior parte delas é sobre família. E, quando vimos, estávamos interpretando uma história de família depois da outra. E teve um momento em que assumimos que iríamos escrever sobre família.
ZH – Essas histórias de família se impuseram, então, com o mesmo peso das questões relacionadas à família em nossas vidas.
Diana – A família é nosso berço, o lugar onde nascem nossas identificações. A palavra que mais nos define no mundo, nosso nome, é concebida no seio da família, aquilo que pensamos sobre nós mesmos é construído e tecido a partir do discurso dos nossos pais, do nosso lugar na sequência dos irmãos, do papel que é dado a cada um na família. Cada pai, cada mãe, cada irmão tem uma espécie de papel como numa peça, e o roteiro desta peça nos funda. Então, quando vamos fantasiar, a gente usa o que como base? A família. Quando vamos planejar nossa vida, a gente vai decidir se vai constituir uma família ou não, então ela está no passado, no presente (porque continuamos pertencendo a ela), e, muitas vezes, no nosso horizonte futuro. É o grande mote de uma vida. Por exemplo: quando sonhamos, qual o lugar privilegiado da maior parte das pessoas? A casa da infância. Então, como isso não vai fazer parte da vida onírica coletiva, que são esses sonhos despertos compartilhados, fantasia da ficção?
ZH – E a despeito de novas formatações de família, como o livro ilustra ao analisar séries sobre pais separados, como The New Adventures of Old Christine, essa fantasia segue focada na família nuclear?
Mário – Ela é ainda um paradigma. E a última coisa que eu imaginava é que, depois de os homossexuais conseguirem um certo reconhecimento de que não são uma doença, a segunda reivindicação deles foi casamento e filhos.
Diana – Casamento e oficialização da união. Somos de um tempo em que ninguém casava. Não lembro de ter ido a festas de casamento na adolescência. Quando tínhamos 20 e poucos anos, casamento era uma instituição em extinção. E o que observamos hoje? Que mesmo em rearranjos, casamentos de gays e de pessoas maduras, todos querem reconhecimento e, se possível, véu e grinalda. Se me contassem isso na década de 1970, eu nunca acreditaria. Parece que é preciso que tudo mude para que permaneça igual. Mudam os personagens, a durabilidade, o sexo dos protagonistas, e continuam o casamento e a família do mesmo jeito.
ZH – Vocês comentam a demora da ficção em retratar a realidade das famílias de pais separados e das novas formatações daí decorrentes. Que outras mudanças foram contempladas com atraso?
Diana – A grande novidade, que é retratada no excelente Modern Family, são os casais gays, uma realidade crescente. Modern Family é o mais ousado de todos os seriados – e é a televisão que está na ponta desse registro das novas conformações familiares, tanto nas propagandas quanto nos seriados, principalmente os americanos. E este registra o recasamento do pai da família com uma mulher mais jovem, esse pai convive com um filho dela do outro casamento, um dos filhos dele é homem gay casado com outro homem, e eles adotaram uma menininha – uma série de novidades que timidamente começam a aparecer na ficção. A outra figura que agora começa a praticamente tomar conta da televisão é a dos separados. Se tomarmos Sex and the City, vamos ver que as histórias das protagonistas, no fim das contas, são cinderelescas: com exceção da Samantha, quase todas caminham para o casamento. Então, esses seriados ainda mais novos, apresentam separados buscando sua identidade em uma sociedade que ainda não tem um lugar muito estabelecido para eles.
Mário – O avulso. Uma sociedade que não tolera o avulso, ainda que existam tantos.
Diana – A sociedade não tolera o avulso justamente porque guarda com unhas e dentes esse ideal da família nuclear, que é o núcleo das nossas fantasias.
"Rir dos pais
é índice da família,
onde há perda
da autoridade paterna"
ZH – O livro mostra como a ficção tem evidenciado a crise da figura paterna, com a mãe em uma posição privilegiada. Como contextualizam esse contraponto?
Diana – Em primeiro lugar, a mulher vive do lucro das conquistas políticas, sociais e psicológicas do último século,. E tem uma coisa muito importante: a maior parte das nossas queixas dirigimos não necessariamente ao pai, mas ao lado paterno do nosso passado. Como a gente considera que vivemos sem muito no que se apoiar para saber quem ser, o que querer da vida, o nosso valor, precisamos processar alguém pelos danos dessa fragilidade que percebemos em nós mesmos. E vamos dedicar essas queixas àquele que deveria ter nos passado a sabedoria e a segurança de que no mundo tudo está no seu lugar. Então, nossas queixas são não tanto ao homem ou ao pai que temos, mas àquilo que a gente acha que o pai deveria ter sido. Não necessariamente o pai, mas um pai, que nos dissesse “seu lugar no mundo é tal”, “você significa tal coisa”, que nos desse esses parâmetros que o nosso pai não dá e que nós, como pais, não damos a nossos filhos porque a gente não sabe. E o papel da mãe é o laço afetivo, que fica preservado. E esse laço amoroso não está sujeito a tantas críticas como está a imanência de sabedoria que a gente esperava que nosso pai nos passasse. O laço afetivo está em alta, e a sabedoria paterna, em baixa. Por isso o pai é tão criticável.
ZH – A partir de obras como Vamos Falar sobre Kevin, vocês destacam que, na discussão sobre o aborto, se omite um fato: não é possível dar vida a um filho não desejado. A despeito das questões religiosas, éticas e legais, o o debate sobre o aborto também está imbuído de um ideal de maternidade?
Diana – Na verdade, não suportamos nem um pouco pensar o quanto nossa própria mãe escolheu se queria ou não que nascêssemos. Preferimos acreditar que fomos uma revelação divina para nossas mães. Pensar que a mulher tem escolha é pensar que um filho pode não ser desejável. Isso é angustiante para todos nós. Essa é uma das razões pelas quais a polêmica do aborto se torna tão psicologicamente delicada para todos nós.
“Dirigimos a maior parte de
nossas queixas
ao lado paterno
de nosso passado”
ZH – Vocês propõem, a partir da análise de Shrek, o conceito de conto de fadas intimista, com personagens mais complexos, envolvidos em uma jornada interior, e com a possibilidade do humor como subversão, em sintonia com crianças mais críticas. Uma vez que os contos de fadas clássicos já passaram por tantas transformações, desde quando eram transmitidos na tradição oral, é possível imaginar que eles possam perder força diante dessas histórias mais complexas?
Mário – Vão ficar mais confinados à primeira infância. Os contos de fadas mais simples vão ficar para as mentes mais simples, que são as crianças pequenas.
Diana – E tem um aspecto pelo qual o conto de fadas ainda permanece e que vai durar para sempre: como elo entre gerações. Pode ser que a vovó não conheça Charlie e Lola, mas certamente conhece Cinderela e João e o Pé de Feijão. Então, será sempre uma linguagem comum entre as gerações, enquanto outras manifestações culturais têm começo, meio e fim. Parece que os contos de fadas foram escolhidos para durar. Não só os relatados pelos irmãos Grimm como outros que hoje têm a mesma categoria de contos de fadas universais, como Alice no País das Maravilhas, O Mágico de Oz e, quem sabe, Harry Potter.
ZH – Vocês destacam o humor como recurso de contestação na família – assim como nos governos democráticos. O que representa hoje poder rir dos pais dentro e fora da ficção?
Mário – É um índice da nova família, onde há perda da autoridade materna e paterna.
Diana – Se o humor hoje brinca primordialmente com a autoridade paterna, essa é uma forma de derrubá-la, mas também de preservá-la. Cada vez que o Homer se comporta como um idiota, o texto que está por trás da piada é: o pai deveria ser alguém forte, e este é um fraco; o pai deveria ser alguém sábio, e este é um ignorante; o pai deveria ser alguém zeloso, e este é um irresponsável. Hoje, as crianças vão trabalhar com os pais dentro das suas contradições, como pais que se impõem, mas que, ao mesmo tempo, se assustam com a própria autoridade, como pais que se ocupam dos filhos, mas estão muito preocupados em cuidar da própria vida e se realizar. Assim como os personagens dos contos de fadas já não são mais unívocos, os pais também não são.
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REPORTAGEM POR PATRÍCIA ROCHA
FONTE: ZHCULTURA online, 27/11/2010
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