JOÃO PEREIRA COUTINHO*
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Minha perversidade não é um
traço de mau-caráter.
É, quando muito,
uma experiência sociológica
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A PERVERSIDADE é o único desporto que pratico. Com regularidade. Um exemplo: alguém me apresenta uma celebridade, dessas que são conhecidas por serem conhecidas, e eu finjo que nunca ouvi falar. "Como é mesmo o seu nome?"
O personagem em causa repete o nome, como se tivesse escutado uma heresia. O rosto não mente: a estupefação profunda; o naufrágio iminente; por vezes, a revolta silenciosa, dolorosa; mas, em todos os casos, uma velha insegurança, que vem das profundezas da alma.
Às vezes, quando estou em forma, subo a parada. A pessoa repete o nome. E eu, propositadamente, troco a profissão. Se é um cantor, digo que já o vi numa novela. Se é um ator, confundo com um cantor. É o golpe final na vaidade da criatura.
A minha perversidade não é um traço de caráter. De mau-caráter. É, quando muito, uma experiência sociológica: as pessoas podem ter todos os aplausos do mundo; podem ter legiões de assessores, adoradores e puros escravos; mas se não existe uma personalidade segura e forte por detrás da máscara, qualquer pequena pedra na engrenagem faz tremer e descarrilar a máquina. Eu sou essa pequena pedra.
A perversidade, dizia, é o único desporto que pratico. Mas nunca esperei encontrar um irmão gêmeo em Michael Foley. Encontrei.
"O Ocidente rico e pós-ideológico
vive mergulhado numa combinação mortal
de desejo permanente e insatisfação permanente.
Queremos sempre tudo.
Queremos sempre mais."
Michael Foley é um filósofo britânico e o seu "The Age of Absurdity" (Simon & Schuster, 260 págs.), que li às gargalhadas numa sala de aeroporto, é um prodígio. Não de filosofia, porque o livro não pretende ser um tratado filosófico. É apenas uma observação perspicaz das nossas loucuras contemporâneas.
E, a páginas tantas, Foley descreve a forma como as celebridades inglesas reagem sempre que ele finge ignorar quem elas são. De fato, a vaidade da natureza humana é igual em qualquer língua.
Nem poderia ser de outra forma. O Ocidente rico e pós-ideológico vive mergulhado numa combinação mortal de desejo permanente e insatisfação permanente. Queremos sempre tudo. Queremos sempre mais. Pior: sentimos que merecemos tudo e temos direito a mais. Mais dinheiro. Mais amor. Mais sexo. Mais reconhecimento. Mais, mais, mais.
Mas, precisamente por querermos sempre tudo e sempre mais, nada do que temos resolve a nossa agônica impermanência.
Nada disso é novo: não existe religião ou filosofia clássica, a começar pela estoica, que não tenha relatado os dramas dessa "dança macabra": a dança do desejo e da sua perpétua insatisfação.
A originalidade de Foley está em aplicar essa verdade aos aspectos mais anódinos do nosso cotidiano, mostrando a "dança" em funcionamento. Nas escolas. Nos lugares de trabalho. E até nas relações pessoais, onde aplicamos o mesmo raciocínio que preside às nossas idas ao shopping do bairro. Se podemos comprar tudo, por que motivo a pessoa que vive ao nosso lado não nos pode fornecer tudo também?
Michael Foley não fica no diagnóstico. Sugere terapia para aliviar essa estranha condição de nos sentirmos como lixo apesar de vivermos em condições materiais com que os nossos antepassados apenas sonhavam.
Mas aqui reside o primeiro mito: a riqueza material é importante; mas, a partir de um certo grau de conforto, a droga não resulta mais.
Robert Nozick, outro filósofo citado por Foley, sabia disso: 30 anos atrás, Nozick pedia-nos que imaginássemos as nossas vidas ligadas a uma máquina. E a máquina simularia experiências altamente satisfatórias, capazes de substituir o vale de lágrimas onde nos arrastamos.
A conclusão de Nozick é glacial: jamais aceitaremos trocar a vida imperfeita que temos pela vida perfeita que a máquina nos concede. Jamais aceitaremos trocar a autenticidade por uma farsa, mesmo que a farsa seja aprazível.
Foley concorda com Nozick. Eu concordo com ambos. Em teoria, e nos momentos de ócio ou desespero, podemos abominar as dificuldades; as responsabilidades; e, no limite, a nossa perturbante mortalidade.
Mas, paradoxalmente, é a dificuldade, a responsabilidade e a consciência do fim que tornam as nossas vidas significativas. "Tudo que é importante é difícil", escreve Foley.
Ou, por outras palavras, de que vale uma máquina de experiências perfeitas se nenhuma dessas experiências foi realmente conquistada e merecida?
Desconfio que as celebridades ocas que encontro com frequência teriam muito a aprender se, de vez em quando, desligassem a sua vaidade da máquina. E viessem cá para fora viver.
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jpcoutinho@folha.com.br
Fonte: Folha online, 30/11/2010
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