terça-feira, 30 de novembro de 2010

A história contemporânea em 250 mil mensagens

Philip Stephens*

Vasculhar o enorme acervo, até agora secreto, de mensagens do Departamento de Estado americano despejadas na web pelo WikiLeaks é mergulhar na história do presente. Relatos sobre falsidade diplomática e retratos nus e crus de líderes estrangeiros ganharam as manchetes. O pano de fundo mais amplo é o de um dos países mais poderosos do planeta lutando para manter a sua primazia.
Os diplomatas americanos têm a pena afiada, mas geralmente precisa. O italiano Silvio Berlusconi é realmente irresponsável e vaidoso e, em política externa, é um fantoche do russo Vladimir Putin. Nicolas Sarkozy é descrito como irritadiço e arrogante; já ouvi diplomatas franceses dizerem coisas piores. A alemã Angela Merkel não pode reclamar da avaliação de não ser dos líderes mais criativos.
O presidente russo, Dmitri Medvedev, não deve estar muito contente em se ver caracterizado, ainda que numa troca de mensagens diplomáticas de 2008, como o "Robin" de um "Batman" Putin. Atualmente, Medvedev faz questão de enfatizar aos visitantes ser o único responsável da política externa russa. O equilíbrio parece efetivamente ter mudado um pouco. Dito isso, duvido que muitos russos discordem da avaliação americana.
Levando em conta como sabota os esforços dos EUA de retomada do processo de paz no Oriente Médio, Benjamin Netanyahu sai pouco chamuscado. O premiê de Israel é definido como elegante e simpático, mas avesso a cumprir promessas. Observações desrespeitosas sobre David Cameron enviadas de Londres deixaram o governo britânico alvoroçado, mas dificilmente o primeiro-ministro britânico poderia afirmar ter se convertido desde então numa figura de destaque no cenário mundial.
Por mais que a publicação dessas fofocas de alto nível tenha ferido muitos egos, trata-se na verdade de material rotineiro de comunicação diplomática. Ninguém deveria surpreender-se com o fato de que diplomatas americanos nas Nações Unidas possam recolher informações pessoais sobre funcionários da ONU. Todo mundo que é alguém faz algo semelhante.
As revelações, é claro, serão prejudiciais aos interesses dos EUA. O governo de Barack Obama terá mais dificuldades para fazer amigos e influenciar pessoas. Os adversários agora estão em guarda e passarão explorar evidências de duplicidade americana.
Os despachos mais interessante, porém, são os relacionados com políticas, mais que com personalidades. Neles vemos a hipocrisia de alguns aliados dos EUA, bem como os equívocos americanos, especialmente no Oriente Médio.
Nada há de novo na hostilidade árabe contra o Irã, de maioria xiita. Os líderes sunitas da Arábia Saudita e alguns países do Golfo são há muito tempo receptivos à ideia de um ataque americano contra instalações nucleares iranianas, embora publicamente neguem qualquer intenção hostil a Teerã. Ver tudo isso no papel é sem dúvida surpreendente. O persistente lobby de Washington deixa algumas atitudes árabes em relação ao regime iraniano parecendo quase indistinguíveis das de Israel.
Esse jogo duplo não se limita ao Irã. O governo do Iêmen contenta-se em ver Washington usar aviões não-tripulados para bombardear os insurgentes da Al-Qaeda no país. Por outro lado, os EUA devem manter-se firmemente fiéis à ficção público de que os ataques são realizados pelas forças iemenitas.
No Afeganistão, Hamid Karzai é descrito como paranoico e acredita-se que um irmão do poderoso presidente esteja envolvido com corrupção e produção de ópio. Mas Washington só pode dar de ombros. Não tem outra opção. Igualmente, os esforços para deter a proliferação nuclear no Paquistão têm sido bloqueados, em Islamabad, por um governo que depende muito de dinheiro dos EUA, mas que está determinado a manter suas opções em aberto.
Em outra parte do acervo de documentos secretos, vemos que a Rússia foi persuadida a apoiar mais sanções da ONU contra o Irã só quando o governo Obama decidiu abandonar os planos de instalação de defesas antimísseis na Europa. A China vem desfechando ataques virtuais contra empresas e agências do governo dos EUA. Governos europeus tiveram de ser ameaçados e subornados para aceitar presos de Guantánamo.
O retrato que emerge é o de um mundo em que a única superpotência tem um cão em cada briga, mas pode esperar muito pouca ajuda dos outros. Netanyahu quer que Obama bombardeie o Irã, mas não cedeu um centímetro para ajudar os EUA a reiniciar as negociações de paz com os palestinos.
A Rússia se diz contra um Irã nuclear, mas espera ser paga por sua cooperação. Europeus censuram Washington pela maneira como trata suspeitos de terrorismo, mas não querem ajudar os americanos a mudar as coisas. Os governos árabes querem que os EUA os protejam do Irã, mas só se o arranjo for mantido em segredo.
O que tudo isso nos diz é que o poder americano está efetivamente em declínio. Num mundo de países emergentes, de proliferação nuclear e de terrorismo internacional, Washington não pode ter certeza de que prevalecerá. Em que medida deveríamos ficar felizes com isso, é outra questão. Por cortesia do WikiLeaks e com base em 250 mil mensagens, pudemos vislumbrar algumas das alternativas. Que importância tem, afinal, uma falsidade diplomática, em relação, digamos, uma corrida nuclear no Oriente Médio?
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*Financial Times
Fonte: Valor Econômico online, 30/11/2010

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