terça-feira, 23 de novembro de 2010

Hans Hoekendijk

RUBEM ALVES*
Imagem da Internet
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Passada a experiência
de medo e horror,
eu tive a maior experiência
de liberdade
da minha vida

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SEU NOME ERA Hans Hoekendijk que se pronuncia "rukendaik". Teria, aproximadamente, 60 anos. Com uma vasta cabeleira de cabelos grisalhos abundantes, seu rosto inspirava tranquilidade, seus olhos azuis eram tristes, sua voz em sussurro revelava mansidão e o cachimbo era, talvez, seu amigo mais íntimo.
De um cachimbo pode-se dizer "meu cachimbo". Mas nunca dizer "o meu cigarro". Lembrando-me dele tenho saudades do tempo em que eu fumava cachimbo. O cachimbo é uma amizade fiel e vagarosa.
Ele era meu colega na instituição em que ensinávamos. Holandês, lutara na resistência contra os alemães durante a Segunda Guerra Mundial e estivera preso num campo de concentração nazista. Reuníamos-nos à sua volta para ouvir suas histórias.
Essa foi a que mais me impressionou. "Tínhamos um rádio clandestino", ele falou. "De noite acompanhávamos as notícias do "front" de batalha. As forças aliadas haviam desembarcado na Normandia e avançavam rapidamente na direção do campo em que estávamos presos. Fazíamos os cálculos. Avançando naquele ritmo dentro de poucos dias estaríamos livres!
Foi quando o comandante do campo nos reuniu a todos no pátio. "Sei que todos estão se alegrando, pensando que dentro de poucos dias estarão livres. Estão enganados. Antes que cheguem as tropas todos vocês serão enforcados!'"

"Voltei, então, à vida normal,
voltei a ter medo e
perdi minha liberdade..."



Ele fez uma pausa no seu relato, comprimiu o fumo de seu cachimbo, deu umas baforadas perfumadas -a fumaça fazendo suas espirais-, e, então, continuou:
"Um grito de horror saiu da boca de todos. Tão próxima a liberdade e tão longe."
"Aí", ele continuou, "passada a experiência de medo e horror, eu tive a maior experiência de liberdade de toda a minha vida. Se vou morrer dentro de dois dias e não há nada que eu possa fazer para evitar a morte, eu sou completamente livre para fazer e dizer o que quiser pois nada pior que a morte poderá me acontecer.
O medo se foi... Olhei então para aquele guarda alemão, metralhadora a tiracolo, bruto e sem compaixão, que sempre me amedrontara. Agora eu posso ir até ele e dizer tudo o que penso e sinto a seu respeito. Que me pode fazer? Dar-me uma rajada de metralhadora? Melhor morrer assim que morrer enforcado.
E aquela mulher -eu sempre a amei de longe, só com meus olhos. Ah! Os olhos... Os prisioneiros também amam e sonham... Eu nunca havia me aproximado dela. Ela era casada. Mas, agora, nós três -eu, ela e o marido- tínhamos um mesmo destino. Iríamos morrer. Senti que podia me aproximar dela e, na presença do marido, confessar meus sentimentos.
Não, não se tratava de um convite à infidelidade. Diante da morte a infidelidade não existe. Era apenas uma revelação de amor. E nos abraçamos..."
Ele se calou, limpou o cachimbo, enfiou-o no bolso, ficou mudo por alguns segundos e então terminou seu relato. "Mas aí nós não fomos enforcados. As tropas aliadas nos libertaram. Voltei, então, à vida normal, voltei a ter medo e perdi minha liberdade..."
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* Teólogo. Educador. Escritor.
Fonte: Folha online, 23/11/2010

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