CARLOS HEITOR CONY*
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Faltava no mundo e em mim aquela luzinha azul
que me desse a lucidez de
acreditar em alguma coisa
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A CARTA apareceu no meio de outras -das outras que evitam o e-mail, preferindo o meio mais tradicional da comunicação humana. O envelope tinha o timbre: "O Seminário". Vinha do Sul, do mesmo seminário que editava a revista que era o órgão oficial dos seminaristas brasileiros. Hoje, acredito que em muitos outros seminários surgiram revistas parecidas, mas lá estavam o nome e o timbre pioneiros: "O Seminário".
O diretor da revista pedia-me uma colaboração para o número do próximo Natal. Lera um dos meus romances, "Informação ao Crucificado", e dizia que os seminários de hoje já não são como o que eu descrevera em meu livro. Fato que, por si, já deu para me causar apreensão: se o seminário do meu tempo foi tão querido, deixando-me uma melancolia que até hoje me sangra e maltrata, como seriam os seminários de hoje?
Mas a emoção maior não ficou nessa hipótese -de serem os seminários cada vez mais diferentes. A emoção veio no pedido em si: uma crônica para ser lida -como dizia a carta- pelos meus ex-colegas do Brasil.
O seminarista que me encomendou a crônica não sabe de uma coisa: foi nessa mesma revista que, há muitos anos, saiu publicada pela primeira vez uma página minha. Morrera o cardeal dom Sebastião Leme, eu era o cronista do seminário (escrevia num enorme livro os eventos da comunidade) e o padre-ministro, dom Castro Pinto, encarregou-me de escrever um artigo sobre o assunto, a pedido da revista. Mandei uma coisa abominável, cheia de imprecações e frases latinas ("Quomodo cecidisti potens in proelio, tu qui salvum faciebas populum Domini?") e aguardei o resultado.
Foi nela que vi pela primeira vez, o meu nome impresso. Foi ali, naquelas páginas humildes e quase clandestinas, que comecei a tomar gosto pela literatura, pelo jornal, por tudo aquilo que mais tarde se transformaria na minha vocação, no meu ofício, na minha pedreira particular.
Muita coisa aconteceu então. Perdi a fé, saí do seminário, andei aos trancos pela vida, comi o pão que o diabo, os homens e as mulheres amassaram para mim, mas persisti, obstinado e fiel, batendo em minhas teclas, guardando meus espantos, semeando as minhas cóleras. Veio depois o primeiro livro, o segundo, o quinto, o décimo, perdi a mão, publiquei mais do que desejava e precisava.
Com mais de 60 anos no ofício e nas costas, se fosse me medir pelas balizas temporais da profissão, bem poderia acreditar que consegui dar o meu recado, dentro das minhas curtas possibilidades e largas circunstâncias. Se não fiz melhor e mais aproveitável não foi por falta de vontade.
"Um dia, ou melhor, uma noite,
acordei de repente e
tive a minha estrada
de Damasco às avessas."
Mas o pedido que me veio do Sul, de repente, abriu em meus olhos um clarão quase extinto, cuja chama foi iluminar os ângulos amortecidos pelo pecado e pelo esquecimento de meus próprios problemas.
E vi novamente o rapaz magro, que a batina tornava mais magro ainda, o pátio colonial do nosso seminário, aquele vulto negro andando de lá para cá, o terço entre os dedos, pedindo desesperadamente que não fracassasse, que a vocação vencesse, que a Graça triunfasse.
Nada deu certo -é certo- mas já estou muito corrompido para me atirar a culpa ou para me redimir com o arrependimento. Um dia, ou melhor, uma noite, acordei de repente e tive a minha estrada de Damasco às avessas. Estranhei estar naquele enorme dormitório, cercado por tantos colegas que dormiam em paz, a luzinha azul no centro do teto, aumentando a escuridão da noite e marcando o caminho entre as muitas camas que rodeavam a minha.
Descobri que estava sem fé, faltava no mundo e em mim mesmo aquela luzinha azul que me desse a lucidez de acreditar em alguma coisa, seria bom se houvesse sempre uma luzinha azul assinalando os caminhos da vida e vencendo a escuridão de tudo.
Vou ao que interessa. Farei a crônica pedida pela revista que me iniciou no duro ofício das letras. Sobre o que é mesmo? Consulto a carta: é sobre o Natal que se aproxima. O assunto está mais do que batido, há até mesmo aquele famoso soneto de Machado: "Mudaria o Natal ou mudei eu?". No meu caso -olhando tudo sem mágoas, acredito que mudamos os dois: o Natal e eu.
______________________*Carlos Heitor Cony (Rio de Janeiro, 14 de março de 1926) é um escritor, jornalista brasileiro, e imortal da Academia Brasileira de Letras. Articulista da Folha.
Fonte: Folha online, 26/11/2010
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