Romano*
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Entre as táticas movidas por indivíduos ou grupos fascistas (de esquerda e direita), uma das mais comuns é acusar o adversário ou crítico de “preconceito”. Se existem palavras cunhadas pelo movimento filosófico das Luzes — que chegou ao Brasil em revoltas como a Inconfidência — “preconceito” é uma delas. Diderot elaborou toda uma obra para debater, analisar e denunciar os preconceitos. Voltaire fez do termo um aríete contra as autoridades religiosas e jurídicas da França e da Europa. Na ponta do aríete estava a bem afiada palavra de ordem: “esmagai a Infame!” (Écrasez l’Infâme!). Quem seria a malévola a ser ferida de morte? A Igreja Católica em primeiro lugar. Mas também a “opinião pública” e mesmo os juízes que levaram Calas ao sacrifício.
É bom recordar o caso, muito instrutivo no Brasil dos linchadores (inclusive na imprensa e meios bem pensantes). Calas era de família protestante e tinha um filho que adorava ouvir música. O culto huguenote era praticamente proibido na França, após a abolição do Edito de Nantes. Logo, o moço frequentava uma igreja católica para ouvir concertos. Como em todas as sacristias a fofoca corre solta (no passado e no presente, os carolas são os piores inimigos da justiça e da caridade) surgiu o boato de sua conversão ao catolicismo. Certa noite a família se reúne para o jantar e o rapaz não aparece. O pai o procura pela casa e o encontra morto. De imediato corre a boataria santa, ou canalha de massa se preferirem, sobre a “causa” da morte. Com certeza absoluta, o pai desnaturado, protestante ademais, teria assassinado o rebento para não permitir sua conversão à Santa Madre. A partir daí, nada que não conheçamos no Brasil dos abutres: ataques à casa, perseguição da família, processos. Com base em testemunhos precários, que repetiam o ouvir dizer comum das multidões irresponsáveis, Calas foi condenado ao estraçalhamento. Seu corpo, após despeçado, recebeu chumbo quente nas juntas, com ele ainda vivo e berrando, para alegria dos santos religiosos e beatos de todos os naipes. Seus descendentes perderam os bens e alguns foram obrigados a deixar o país.
Voltaire, procurado por amigos de Calas, iniciou uma pesquisa ampla sobre o assassinato do moço, com documentação, provas, etc. E mostrou à Casa Real (os juízes não revisaram o processo por iniciativa própria) a inocência do acusado. Houve reabilitação post mortem de Calas e o filósofo cumpriu seu papel de lutar contra... o preconceito que decidiu, sem pensar, que um protestante tudo faria pela sua fé, mesmo tirar a vida de um filho.
"...como diz Millôr Fernandes,
livre pensar é só pensar
(numa frase ainda mais
inspirada, “pensar dói”):
os preconceituosos apenas
repetem sua cantilena."
O que é preconceito? Enunciar frases sem antes pensá-las. “O preconceito é uma opinião desprovida de juízo” (Voltaire, Dicionário Filos? fico). Juízo é pesar termos, acusações, pessoas. “Pensar” vem justamente de “pesar”. Um dos maiores críticos da parolagem irresponsável foi Montaigne, o autor dos “Ensaios”. Para ele, seria preciso pesar palavras como o ensaiador real pesa moedas de ouro. Circulavam na época muitas moedas falsas, sem a necessária liga prescrita. Montaigne propunha que, antes de usar as palavras/moedas, elas fossem pesadas para garantir seu teor de verdade. Como o mundo social e político é dominado por moedeiros falsos (o nome, hoje, é marketing político) a verdade é tida como impossível no Estado e nos movimentos sociais. O que dissolve a fé pública e destrói os direitos.
Existem pessoas que, ao ouvir certas palavras e se elas não se encontram na ladainha de seu preconceito, as repelem sem pensar. Se ouviram uma, duas, infinitas vezes que tal enunciado é “preconceituoso”, pulam quando escutam algo que recorde a fala “maldita”. E assim foi implantado o pior preconceito, o do “politicamente correto”. Nas últimas eleições, os preconceituosos atacaram com alegria, sem pesar nem pensar, como de hábito. Claro, como diz Millôr Fernandes, livre pensar é só pensar (numa frase ainda mais inspirada, “pensar dói”): os preconceituosos apenas repetem sua cantilena. Pouco importa se, no caminho, linchem inocentes ou destruam reputações. Falar sem ajuizar, afinal, gratifica, dá fama (falsa) de pessoa “do bem”. Pobre Brasil.
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*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia Política na Unicamp.
Fonte: Correio Popular online, 17/11/2010
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