MOACYR SCLIAR*
Foto da Internet
Quatro momentos na vida de Rachel de Queiroz
Autora cearense foi uma pioneira, tanto na vida quanto na literatura
Nascida em Fortaleza, Ceará, há exatos cem anos (17 de novembro de 1910), Rachel de Queiroz, falecida em 2003, teve uma longa e bem-sucedida carreira literária. Para a qual não lhe faltaram estímulos. Para começar era de família culta, na qual figuravam nomes como os de José de Alencar, parente de sua bisavó. O pai, jurista, encarregou-se pessoalmente da educação da filha, introduzindo-a à leitura. E seu talento jornalístico foi precocemente reconhecido; ainda adolescente já estava escrevendo para jornais. O resultado foi uma obra apreciável, incluindo romances (Memorial de Maria Moura, que deu minissérie na Rede Globo, Três Marias, Dôra, Doralina), peças teatrais, traduções (Dostoiévski, Balzac, Faulkner e Conrad). Foi a primeira cronista da imprensa brasileira; aliás, considerava-se “mais jornalista que escritora”.
Nascida em Fortaleza, Ceará, há exatos cem anos (17 de novembro de 1910), Rachel de Queiroz, falecida em 2003, teve uma longa e bem-sucedida carreira literária. Para a qual não lhe faltaram estímulos. Para começar era de família culta, na qual figuravam nomes como os de José de Alencar, parente de sua bisavó. O pai, jurista, encarregou-se pessoalmente da educação da filha, introduzindo-a à leitura. E seu talento jornalístico foi precocemente reconhecido; ainda adolescente já estava escrevendo para jornais. O resultado foi uma obra apreciável, incluindo romances (Memorial de Maria Moura, que deu minissérie na Rede Globo, Três Marias, Dôra, Doralina), peças teatrais, traduções (Dostoiévski, Balzac, Faulkner e Conrad). Foi a primeira cronista da imprensa brasileira; aliás, considerava-se “mais jornalista que escritora”.
Em sua trajetória quatro momentos se destacam. O primeiro é representado pelo lançamento de seu primeiro livro, o romance O Quinze, publicado em agosto de 1930 quando a jovem Rachel teve de ficar em repouso por causa de uma suspeita de tuberculose, doença então muito temida. A história gira em torno à terrível seca de 1915 e, a princípio, não despertou o interesse de editores, tanto que foi publicado com a ajuda financeira do pai. Mas depois chegou às mãos de críticos e de outros escritores, causando impacto e celeuma, inclusive pela pouca idade da autora e pelo fato de ela ser mulher, o que mexia com preconceitos arraigados em nossa cultura; querendo elogiar o livro o poeta Ascenso Ferreira disse: “É um livro de macho”. E Graciliano Ramos: “Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado”. Augusto Frederico Schmidt levantou a suspeita de que “Rachel de Queiroz fosse apenas um nome escondendo outro nome” já que não havia, em O Quinze “nada que lembrasse, nem de longe, o pernosticismo, a futilidade, a falsidade de nossa literatura feminina”. Esses comentários deixavam Rachel furiosa, mas tinham certo fundamento; à época, e segundo a própria Rachel, “a literatura feminina era feita por senhoras que escreviam histórias comoventes ou poesias apaixonadas”. O certo é que já no ano seguinte Rachel foi contemplada com o prestigioso Prêmio Graça Aranha. Era um reconhecimento a seu papel inovador; de fato, podemos dizer que O Quinze é uma das primeiras obras de ficção regionalista e de engajamento na realidade social do país. O que explica o segundo momento de Rachel de Queiroz. Convivendo com escritores de esquerda, ela se aproximou do Partido Comunista, que estava então em seu auge: a Revolução Russa polarizava as esperanças de mudança social. Rachel esteve entre os fundadores do PC cearense, foi fichada como “agitadora comunista” pela polícia política. E então, a ruptura.
Rachel havia terminado João Miguel, seu segundo romance; foi então avisada, pela liderança comunista, que deveria submeter os originais ao julgamento do Partido, já que literatura era vista como instrumento de agitação política e tinha de ser “orientada” para isso. Mas, no romance um operário mata outro, o que o PC considerou uma afronta; operário podia matar um burguês, não um companheiro. Na reunião Rachel fingiu aceitar a crítica; pegou os originais, declarou que não via no partido autoridade para censurar seu trabalho, e fugiu do local “em desabalada carreira”, segundo contou depois. O livro foi publicado pela editora Schmidt, do Rio, e Rachel não voltou ao comunismo. Ao contrário, optou pelo extremo oposto; em 1964, e este é o terceiro momento que nos interessa, conspirou para derrubar João Goulart que pretendia, segundo a escritora e outros, instituir um regime sindicalista. Ofereceu seu apartamento para reuniões dos conspiradores e o primeiro presidente militar, Humberto de Alencar Castello Branco. Graças a sua posição, representou o Brasil na ONU e passou a integrar o Conselho Federal de Cultura. Mas depois deu-se conta das características ditatoriais do regime e retirou seu apoio ao governo autoritário.
O quarto momento ocorre em 1977 quando ela se torna a primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras (ABL) que até então, e seguindo o modelo da Academia Francesa (fundada em 1635 pelo Cardeal Richelieu) não aceitava mulheres, apesar das tentativas nesse sentido: em 1910, o acadêmico Émile Faguet causou escândalo ao propor a entrada de mulheres na AF. No caso da ABL, dizia o estatuto : “Só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito”. O termo “brasileiros” que deveria democraticamente (ainda que com certo preconceito) englobar os dois sexos referia-se, segundo a interpretação corrente, só a homens. Em 1930 Amélia Beviláqua, esposa do famoso jurista Clovis Beviláqua, candidatou-se a uma vaga. O “susto” foi tal que, em 1951, acrescentou-se, à palavra “brasileiros” o aposto “do sexo masculino”. Mas àquela altura o movimento anti-Clube do Bolinha ganhava força (na verdade, o apoio para tal vinha desde Machado de Assis). Em 1970 Dinah Silveira de Queiroz (1911–1982), primeira escritora a receber da ABL o Prêmio Machado de Assis, candidatou-se, mas não foi eleita – por causa do referido artigo. Em 1976, o acadêmico Osvaldo Orico propôs a supressão da expressão “do sexo masculino”, proposta aprovada, Rachel pode ser eleita. A partir daí o caminho estava aberto; em 1980 Marguerite Yourcenar torna-se a primeira mulher a entrar na Academia Francesa; outras cinco sucederam-se, incluindo Assia Djebar, escritora e feminista argelina, e a ministra Simone Weil, intelectual que passara por um campo de concentração nazista. E depois de Rachel de Queiroz outras cinco mulheres foram eleitas para a ABL: Dinah Silveira de Queiroz, em 1980; Lygia Fagundes Telles, em 1985; Nélida Piñon, em 1989; Zélia Gattai, em 2001, Ana Maria Machado, em 2003.
Quatro momentos numa longa e fértil vida. Quatro momentos que nos dão uma ideia da importância de Rachel de Queiroz na cultura brasileira.
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* Méido. Escritor. Cronista.
Fonte: ZH Cultura, 13/11/2010
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