quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Rudá Ricci - Entrevista

A classe média emergente e o caldo de cultura ultraconservador.


 "Praticamente 24 milhões de pessoas são alçadas
à condição de classe média no Brasil",
constata Rudá Ricci, sociólogo,
em entrevista publicada pela
 página eletrônica do Sinpro-SP.

Eis a entrevista.

Professor, quem é mais especificamente essa nova classe média que está surgindo no Brasil?
Principalmente na primeira década do século XXI, praticamente 24 milhões de pessoas são alçadas à condição de classe média no Brasil. Esta é uma situação inédita na história do país e só encontramos algo similar nos Estados Unidos, na década de 1950, depois da Segunda Guerra Mundial. Essa é uma nova classe C, que ganha entre 4 e 10 salários mínimos – pensando na renda familiar e não individual. Ela rompe com o histórico de pobreza. São pessoas jovens, com até 25 anos, magras e negras. Eles romperam portanto com a história dos pais, dos avós, dos bisavós e, por isso mesmo, consomem muito, porque querem se afastar a qualquer custo, como faria qualquer pessoa no lugar deles, do histórico de marginalidade que sempre existiu. Já temos várias pesquisas da Fundação Getúlio Vargas, do Ibope, do Boston Group, muitos dados, sobre essa nova classe C. Ela sabe que não é miserável, mas tem medo da queda. Por isso mantém uma rede de relações que, em caso de qualquer liquidação, por exemplo, uma família avisa a outra e rapidamente vão ao consumo. Eles não consomem produtos populares, ao contrário do que se possa imaginar. A classe C compra produtos de marcas top e Premium, TV de plasma, celular, carro, imóveis na periferia. É muito consumista, espantosamente consumista. Essas famílias são conservadoras em termos religiosos e de hábitos sociais, desconfiam de tudo que é público, são conservadores politicamente e não por ideologia.

É o medo de perder as conquistas?
Exatamente. A nova classe média tem muito receio de cair de novo, por isso não vota em candidatos que signifiquem ruptura, que demonstrem alguma tendência de mudar a ordem pública. É importante ressaltar que esse grupo não se prende a curral eleitoral e essa talvez seja uma característica nova no jogo político nacional. Nunca antes tivemos um grupo com características assim. Só votam em quem garante a ascensão social, ou seja, querem garantias de que vão continuar comprando e que vão pagar as dívidas, porque 60% já estão endividados e 40% desse total não sabem o que fazer para pagar esses débitos. E a segunda característica é que eles não votam em quem propõe ruptura. E nesse sentido, o Lula cai como uma luva para esses anseios. Mas não como idolatria, é fundamental dizer isso. Lula combina com esse pensamento pragmático da ascensão social e da manutenção da ordem vigente.

E, portanto, também a candidata apoiada por ele, Dilma Roussef.
O candidato dele – mostram várias pesquisas qualitativas – foi o próprio Lula. Esses estudos revelam que uma parcela significativa da classe C e das classes ainda mais baixas votaram no lulismo. E não por ignorância, não é um grupo inconsciente, mas eles identificaram em Dilma a continuação do lulismo. Eles sabiam que estavam votando num projeto que assegurava a ascensão da família, como eu já expliquei. Essa população tem letramento, tem acesso à informação. Não lê, é verdade, mas sabe o que está acontecendo e escolhe seus candidatos de forma bem egocêntrica. São famílias egocêntricas. Por exemplo, vão à igreja para conseguir o sucesso, por isso fazem muitas novenas e promessas. A religião é usada como uma estratégia de garantia e de estratégia da família.
"A classe C compra produtos de marcas
top e Premium,TV de plasma, celular,
 carro, imóveis na periferia.
 É muito consumista,
espantosamente consumista.
Essas famílias são conservadoras
 em termos religiosos e
de hábitos sociais,
desconfiam de tudo que é público,
são conservadores politicamente
e não por ideologia."


Parece que isso muda então o lugar social da religião, não?
Muda sim. Completamente. Eu mesmo coordenei uma pesquisa com os católicos praticantes e isso ficou muito claro. É o que estamos chamando de religiosidade privada, de se trabalhar a fé a partir de si e da sua família. A votação no final do 1º turno, com dados muito duros de crítica, ligadas à candidatura de Dilma, como a questão do aborto e do casamento de homossexuais, foi a primeira emergência pública política desse conservadorismo fundamentalista religioso no Brasil. Eu acho que surgirá nos próximos anos o primeiro movimento social de massa, de base, depois do regime militar, ultraconservador no Brasil. E eles vão definir as próximas eleições.

O senhor acha que esse movimento já está em gestação?
O que estou querendo dizer é que já há no Brasil um caldo de cultura ultraconservador, vindo dessa classe média emergente, mas também das classes menos abastadas, e surgindo ainda como uma reação, não de cunho conservador religioso, mas de indignação, por parte da classe média tradicional, que por sua vez vem perdendo poder aquisitivo. A política de transferência de renda do governo federal retira recursos desse segmento tradicional.

Pois é, surge uma nova classe, com novos valores, novas demandas e certamente isso causa respostas sociais. Como se posicionam os outros atores diante dessa realidade?
Em primeiro lugar, já existia esse caldo de cultura, mas não organizado. Então, no final do primeiro turno das eleições a gente teve uma liderança que se candidatou a se tornar referência desse segmento, que deve estar girando entre 10% e 20% do eleitorado brasileiro. No final do primeiro turno, as lideranças carismáticas da igreja católica e alguns bispos pentecostais e neopentecostais também se apresentaram, mas não se garante que são de fato lideranças dessa mobilização. Antes de responder a pergunta, vou levantar uma questão histórica e sociológica. Temos o caso da Espanha, país dividido em dois grupos, um mais à direita, conservador, e outro mais à esquerda, mais progressista. Mas lá são dois blocos bem unificados. E temos o Tea Party nos Estados Unidos, que também é um movimento ultraconservador. A diferença é que existem 600 grupos conservadores norte-americanos que, embora votem juntos e pensem muito parecido, não se unificam nacionalmente. Na minha leitura, essa situação dos Estados Unidos é a que mais se aproxima da situação do Brasil. Se unem em eleições, em tempos de ajustes na economia, mas não se unificam num só partido, sob uma única bandeira, apesar de começarem a ter voz ativa. É o primeiro grande movimento de massa de direita depois da democratização. Isso é inédito. Tivemos a União Democrática Ruralista, a UDR, mas dessa vez é de base.
"A nova classe C,
que é metade da população brasileira,
não lê jornal.
Então a gente tem aqui um
confronto da linha editorial dos grandes jornais que,
 além da postura editorial,
também têm uma estratégia
de mercado de continuar falando
com esse segmento"

E os outros segmentos?
Estão surfando na onda do sucesso e do crescimento do país. As classes A e B não apresentam nenhuma rejeição à pauta do desenvolvimentismo que tivemos no Brasil nos últimos anos. Pelo contrário. Tivemos até uma parcela do empresariado – cito aqui o caso do Jorge Gerdau – que até lançaram o terceiro mandato de Lula. Temos fatia da classe B e segmento da classe média tradicional que se posta com uma rejeição muito forte ao lulismo e a tudo que ele representa porque, além de perder o poder aquisitivo, é uma parcela que se posiciona contra os comportamentos fundamentalistas, eles se consideram mais livres, autônomos, cidadãos do mundo. Criticam o que consideram populismo e o que não leva em conta a alta cultura, a cultura de elite. Esse segmento tem uma postura mais ideológica e mais unificada. São os segmentos que assinam os jornais. Vamos lembrar que as classes menos abastadas e a classe C, que juntas representam mais de 70% da população brasileira, não lêem jornais. A nova classe C, que é metade da população brasileira, não lê jornal. Então a gente tem aqui um confronto da linha editorial dos grandes jornais que, além da postura editorial, também têm uma estratégia de mercado de continuar falando com esse segmento. Então os jornais, como a Folha de São Paulo e O Globo, se alinharam e acabam virando porta-vozes dessa classe média tradicional, classe B, que se sente vilipendiada nos seus valores e no seu consumo. Essa segmentação política e ideológica tem relação direta com o mapa do Brasil. As classes emergentes estão no Norte e no Nordeste, enquanto o Centro-Sul e o Sudeste são mais reativos ao lulismo. O Brasil está dividido.

Daí as velhas reações preconceituosas de culpar os nordestinos pela vitória do lulismo, ou querer separar São Paulo do resto do país, porque aqui seria um país de primeiro mundo?
Essa daí é a base cultural e de sentimentos que faz surgir reações de preconceito, de xenofobia, de racismo. Ou seja, temos hoje uma cultura ultraconservadora de orientação fascista. Precisamos começar a discutir aqui no Brasil – que se considera um país tão tolerante, uma democracia racial – que essa tolerância foi muito desgastada no processo eleitoral. A história da bolinha de papel vira uma senha para que os ânimos se acirrem. E essas manifestações contra nordestinos e homossexuais que vêm acontecendo em São Paulo estão no mesmo pacote de reações dessa classe média que se sente roubada. Uma pesquisa, se não me engano do Ibope, mostra que os universitários brasileiros são três vezes mais duros no que consideram punições justas para os infratores. São os universitários os que pedem as penas mais severas.

Parece existir então um momento político novo, com novas forças.
Temos uma crise, um momento de crise, porque o cenário político-partidário vigente hoje não representa, não retrata esses grupos ultraconservadores. O Democratas está sumindo, já se fala em fusão com o PMDB e outra parte com o PSDB, não há esse espírito de direita conservadora nas eleições. E não ter essa força organizada em termos políticos acaba desembocando nessa oposição de afrontas pessoais, de briga por valores. A democracia vive de contradições. Ou seja, todas as forças políticas precisam estar representadas no espectro partidário. Se o país tem essa pluralidade ideológica e isso não se encontra no processo eleitoral, acaba se manifestando na rua. Então teremos daqui para frente eleições complicadas, principalmente porque também nosso sistema partidário está em frangalhos e o Estado cada vez mais poderoso. Os prefeitos hoje estão nas mãos do governo federal, através de convênios e parcerias. Ou seja, faltam instâncias mediadoras entre o governo federal e as ruas e isso é perigoso para a democracia.

Falamos das forças mais conservadoras, mas também me parece que as forças progressistas e alinhadas com as esquerdas também estão desaglutinadas. Durante o segundo turno, houve certa união, mas terminado esse processo, para onde vão essas forças? Parece que o lulismo não responde a velhas reivindicações, como a reforma agrária, a descriminalização do aborto, o casamento de homossexuais... O que o senhor pensa disso?
As forças progressistas estão desaglutinadas, em especial as não partidarizadas. No campo partidário, temos um chamamento de aproximação entre PCO, PCB, PSOL, PSTU, entre outras forças. Outras organizações partidárias de centro-esquerda e todo movimento sindical estão sob as asas do lulismo, compõem uma única força política. Mas é no campo das organizações populares, como alguns movimentos sociais, pastorais sociais, ongs, fóruns e redes que a divisão é maior. Houve excesso de partidarização deste campo, que perdeu autonomia e jogou muito esforço em composições de governo e eleições. Agora percebem o peso de perder a autonomia e o protagonismo da agenda de reformas do país. O que penso é que a reforma política poderá galvanizar este bloco. Temas como apenas uma reeleição para parlamentares, extinção do Senado, voto distrital misto, responsabilização de autoridades públicas que não melhorarem indicadores sociais, gestão participativa no parlamento, criação de um órgão federal semi-autônomo de planejamento estratégico do país (ao estilo Banco Central, com participação de representantes da sociedade civil e governo), democratização e articulação dos conselhos de gestão pública podem gerar uma pauta de retomada do controle social sobre o Estado.
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Fonte: IHU online, 24/11/2010

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