sábado, 13 de novembro de 2010

Liberalismo e religião

ANTONIO CICERO*
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A quem pode interessar o conservadorismo
senão à plutocracia americana,
às corporações e bilionários?

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NO INTERESSANTE artigo "Patologias do indivíduo" (Opinião, 9/11), Vladimir Safatle afirma que "a vida contemporânea demonstrou que individualismo e religiosidade, liberalismo e restrições religiosas dogmáticas, longe de serem antagônicos, transformaram-se nos dois polos complementares e paradoxais do mesmo movimento pendular". Trata-se, para ele, do movimento pendular do pensamento conservador.
Num primeiro momento, a vitória do Partido Republicano nas recentes eleições americanas -que provavelmente até ocasionou o seu artigo- parece dar-lhe razão. Ocorre porém que, justamente nos Estados Unidos, o "pensamento conservador" se define em oposição ao "pensamento liberal", de modo que a vitória dos republicanos sobre os democratas foi tomada por todos como uma vitória dos conservadores CONTRA os liberais.
O que diferencia o conservadorismo americano do europeu é que os Estados Unidos não tiveram uma aristocracia. Principalmente depois da Revolução Francesa, o conservadorismo europeu, nostálgico do "ancien régime", definia-se contra a Ilustração, a secularização, o liberalismo e o individualismo, que considerava alienantes, e exaltava os valores da comunidade, da autoridade, da hierarquia e do sagrado.
Os Estados Unidos, porém, já surgiram com a afirmação tanto da separação entre o Estado e a religião quanto das liberdades individuais. A divergência entre conservadores e liberais americanos se dá principalmente no sentido e no alcance que cada um deles atribui a cada um desses pontos. O primeiro é um ponto fundamental para os liberais. Quanto aos conservadores, basta lembrar a recente demonstração de ignorância da candidata republicana ao Senado pelo Estado de Delaware, Cristine O'Donnell, que reconheceu publicamente desconhecer que a separação entre o Estado e a religião se encontra estabelecida na famosíssima primeira emenda da Constituição dos EUA.
Quanto às liberdades individuais, os liberais tendem, cada vez mais, a entendê-las no sentido mais amplo e universal possível, considerando que compete à sociedade, por meio do aparelho de Estado, garantir que, em princípio, todos os cidadãos tenham a oportunidade de exercê-las plenamente, oferecendo-lhes, para tanto, as condições necessárias de saúde pública, educação, renda mínima etc. Como o famoso economista liberal Paul Krugman recentemente declarou, o termo "liberal" nos Estados Unidos significa mais ou menos o mesmo que "social-democrata" significa na Europa.

"O que diferencia
o conservadorismo americano
do europeu
é que os Estados Unidos não tiveram
uma aristocracia."

Já os conservadores americanos, opondo-se à interpretação ampla das liberdades individuais, tentam reduzi-las basicamente à garantia do "laissez-faire", isto é, da ausência ou da minimização da intervenção do Estado na sociedade e na economia. Para eles, qualquer interpretação mais ampla das liberdades individuais é suspeita, e "social-democracia" é sinônimo de "comunismo". A quem pode interessar diretamente tal conservadorismo, senão à plutocracia americana, aos grandes bancos, corporações e bilionários? Pode-se facilmente entender como é que, contra qualquer mudança, esses conservadores deem graças a Deus pela sobrevivência e expansão da religião e de pretensos "valores genuinamente americanos".
O estranho é que os republicanos tenham sido capazes de seduzir para esse conservadorismo grande parte da população interiorana e branca norte-americana, composta, em grande parte, de subempregados, desempregados e ameaçados de desemprego, exatamente em consequência da política republicana de "laissez-faire" para os grandes monopólios também na agricultura. No entanto, os membros do Tea Party preferem explicar de outra maneira os seus problemas.
Dado que foi a partir dos anos 1960 que tiveram início não somente as mais importantes ampliações dos direitos -das liberdades- dos negros, das minorias em geral, das mulheres etc., mas também o declínio econômico dessa população, consideram que este declínio foi causado pela ampliação daqueles direitos. Assim, tendo os anos 1950 como uma época áurea, culpam o liberalismo cosmopolita por tê-la destruído, ao minar os seus "valores genuinamente americanos".
De todo modo, é preciso reconhecer que a relação entre o liberalismo e a religião é um tanto mais complexa do que a que Safatle esboçou.
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* Filósofo. Poeta. Articulista da Folha
Fonte: Folha online, 13/11/2010

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