sábado, 27 de novembro de 2010

“O Batismo de Cristo”

Carlo Ginzburg*
Cultura publica com exclusividade
trecho do novo livro de Carlo Ginzburg,
que faz conferência
no Fronteiras do Pensamento

O Batismo de Cristo, hoje na National Gallery de Londres, é considerado por muitos estudiosos (não todos) como uma das obras mais antigas de Piero della Francesca a chegar até nós. O tema do quadro é imediatamente identificável. Charles de Tolnay, porém, notou uma anomalia em relação à iconografia tradicional do batismo: ao contrário do que era costumeiro, os três anjos não estão segurando as roupas de Cristo mergulhado no Jordão. Aqui, o anjo da esquerda contempla a cena, enquanto o da direita está com o braço apoiado no ombro do anjo central, ao mesmo tempo que lhe segura a mão. Tolnay comparou esse gesto ao das três Graças representadas num medalhão de Niccolò Fiorentino, da mesma época, que traz a inscrição Concórdia, e interpretou o grupo como uma alusão às Graças enquanto símbolo de Harmonia. Essa interpretação foi esmiuçada e desenvolvida em data recente por Marie Tanner, que considerou o gesto dos dois anjos sob o olhar do terceiro, calcado na iconografia romana da Concórdia, uma alusão à concórdia religiosa entre a igreja do Oriente e a do Ocidente, sancionada pelo Concílio de Florença de 1439.
A interpretação de conjunto apresentada por Tanner se funda na identificação do significado preciso desse gesto. As roupas e chapéus orientais (que reaparecem nos afrescos de Arezzo) caracterizam os personagens no plano de fundo como sacerdotes bizantinos. Os três anjos, bem como as cores de suas roupas – vermelho, azul e branco –, remetem à Trindade, conforme o simbolismo sugerido por Inocêncio III ao ser fundada a ordem dos trinitários, e evocam as discussões teológicas sobre o dogma trinitário entre os teólogos das duas igrejas, que se prolongaram por dois anos, em Ferrara e depois em Florença. O aperto de mão dos dois anjos simboliza não só o fim do cisma e a reconstituição da concórdia entre as duas igrejas, como também o resultado mais importante do concílio, do ponto de vista teológico: a chamada cláusula do Filioque acrescentada ao Credo (aceita pelos orientais depois de longas resistências), decretando que o Espírito Santo procedia tanto do Pai quanto do Filho. O tondo (hoje perdido) que originalmente encimava o Batismo também frisava as implicações trinitárias da cerimônia realizada às margens do Jordão.
Disso decorre a proposta de atribuir a data do quadro ao ano de 1440, ou logo depois. Uma datação demasiado posterior seria incompatível com a rápida deterioração da concórdia entre as duas igrejas, causada pelo fortalecimento do partido constantinopolitano, contrário à unidade com a igreja de Roma. É de se notar que essa datação, fundada em elementos exclusivamente iconográficos, em sua essência coincide com aquela proposta por Longhi em bases exclusivamente estilísticas (1440-45).
Como se vê, a interpretação de Tanner remete os elementos do Batismo a um projeto unitário, analítico e compacto, justificando suas anomalias iconográficas de maneira convincente. No entanto, partindo da anomalia mais evidente entre elas – o gesto da concórdia sobre o qual se baseara Tolnay –, Battisti havia sugerido, pouco tempo antes, uma interpretação completamente diferente.
Antes de deixar para sempre Sansepolcro, o Batismo de Piero integrava um políptico, conservado na catedral dedicada a São João Evangelista. As laterais e a predela (hoje no Museu Cívico de Sansepolcro) representam respectivamente santos e doutores da Igreja e cenas da vida de São João Batista. Nenhuma é da lavra de Piero, e são sem dúvida posteriores ao Batismo. Elas têm sido atribuídas, com alguma incerteza, a Matteo di Giovanni, e datadas entre 1455 e 1465. Na predela aparece o brasão de uma das famílias mais destacadas de Sansepolcro, os Graziani. Não há dúvidas de que foi um Graziani a encomendar a predela e as laterais do políptico. Segundo a suposição de Battisti, o mesmo Graziani também teria encomendado o painel central e o tondo acima dele, ambos realizados por Piero. Em sua leitura de Tolnay, Battisti isolou (ao contrário de Tanner) a comparação dos anjos às três Graças, deixando de lado o tema da concórdia.
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*POR CARLO GINZBURG HISTORIADOR, AUTOR DE “O QUEIJO E OS VERMES” (COMPANHIA DAS LETRAS, 1987), CONFERENCISTA CONVIDADO DO FRONTEIRAS DO PENSAMENTO NA SEGUNDA-FEIRA
Fonte: ZH CULTURA, online, 27/11/2010

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