CARLOS HEITOR CONY*
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Um individualista apenas reivindica
o direito de conservar sua lucidez,
sua autonomia existencial
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RECONHEÇO QUE a palavra -e quase o conceito- é pejorativo. Periodicamente, as correntes de pensamento voltam-se contra o indivíduo, atribuindo-lhes todos os pecados da história. Até mesmo as religiões, em sua base, combatem o individualismo, num pressuposto que considero falso, segundo o qual o indivíduo é o pai do egoísmo.
Prefiro retornar às origens da palavra e do conceito, não para me justificar -que não devo justificações a ninguém-, mas para explicar a minha situação ante o fato e o comportamento políticos que alguns leitores e até mesmo alguns amigos não cansam de me condenar, uma vez que sempre me declaro desvinculado de qualquer ideologia, partido ou corrente de opinião. Desde que me entendo (coisa difícil por sinal, dificilmente me entendo), adotei o bloco do eu sozinho.
Tomo o indivíduo em sua genuína concepção filosófica, definido, até segunda ordem, pela lógica aristotélica: "Indivisum in se et divisum a quolibet alio". Para que não confundam alhos e bugalhos com a palavra "alio", vai a tradução: "Indiviso em si e diviso de qualquer outro".
Temos, pois, que a primeira característica do indivíduo é ser indiviso em si, uno, o que não significa íntegro. Repito uma frase do padre Leonel Franca, colocada no pórtico de um livro confuso, mas bem intencionado: "O homem vale o que vale a sua unidade".
Assim, se antes eu pensava que Kruschev (1894-1971) era um pacifista, um político simpático e útil, hoje eu não posso considerá-lo um imbecil só porque a antiga União Soviética preparou um relatório adverso contra a sua administração. O exemplo pode parecer defasado e até idiota, mas se destina a cabeças idiotas que confundem exatamente os alhos com os bugalhos que já citei aí em cima.
A segunda característica do indivíduo é ser diviso de qualquer outra coisa. Diviso significa separado, e não estanque. Significa autônomo, mas não impermeável. No fundo, significa livre e não escravo.
Ilya Ehremburg (1891-1967) em suas memórias tem um trecho sobre os chamados movimentos coletivos. Diz ele que de nada adianta juntar zero com zero: um milhão de zeros é zero ao final das contas. Torna-se necessária a presença da unidade para se obter uma expressão, um valor. Unidade, no caso, também pode significar indivíduo.
"O individualista se dá:
não toma nem recebe.
Vai, mesmo quando não sai do lugar."
Por tudo isso -e mais aquilo que seria ocioso explicar- continuo me reservando o direito de ser e permanecer individualista. Um individualista que procura respeitar outros individualistas, pronto ao afago ou à agressão -conforme o rodar da carruagem.
Sei que os movimentos coletivos precisam, basicamente, de comando, de subordinação, de disciplina, de ideias gerais e de unidade de combate. Mas um individualista não se recusa a nada disso. Apenas reivindica o direito de conservar a integridade de sua lucidez, sua autonomia existencial. O individualista se dá: não toma nem recebe. Vai, mesmo quando não sai do lugar.
Há um exemplo que gostaria de citar: o do professor Mathieu, personagem da trilogia de Sartre, "Os Caminhos da Liberdade". No primeiro volume, Mathieu chega à idade da razão mergulhado num individualismo quase egoísta. É ainda o prolongamento do personagem de "A Náusea" (1938) com outro nome e com nova comparsaria.
No segundo volume, Mathieu pede tempo para pensar e, nesse sursis interior, procura orientar seu individualismo na luta coletiva por uma causa imediata, tornada aguda pela guerra. E irrompe na batalha, matando e morrendo em busca de uma redenção mais individual do que coletiva, expressa no terceiro volume: a morte na alma.
Considero os três estágios, a idade da razão, o sursis e a morte na alma, os caminhos da liberdade, liberdade que não é cômoda nem prazerosa, mas crispada, um dever do indivíduo para com o indivíduo, nunca um momento existencial avulso, mas um roteiro além da condição humana, mais própria da consciência humana.
Corrigidas as disparidades de espaço e tempo, de ficção e realidade, o indivíduo é a alternativa da legião. Uma das passagens da Bíblia que mais me ensinaram foi a cena em que Cristo, ao fazer um exorcismo, perguntou o nome do Demônio. A resposta foi: "Legião é o meu nome porque somos muitos" (MC 5,9).
___________________*Carlos Heitor Cony (Rio de Janeiro, 14 de março de 1926) é um escritor, jornalista brasileiro, e imortal da Academia Brasileira de Letras. É editorialista da Folha de São Paulo (Wikipédia)
Fonte: Folha online, 19/11/2010
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