sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A ética do outro

O psicanalista Jurandir Freire Costa toma o imaginário
da literatura para refletir
sobre a variante circunstância humana.

Mônica Imbuzeiro/Ag. O Globo

Psicanalista acostumado a tomar distância de seu prestigiado consultório, em Copacabana, Rio, para pensar as grandes questões humanas, o pernambucano Jurandir Freire Costa volta à cena, mais uma vez, para nos ajudar. Seu mais recente livro, "O Ponto de Vista do Outro" (Garamond), enfrenta, sem rodeios, sem preconceitos e sem a pretensão de dar lições peremptórias, a questão ética que agita o mundo de hoje. O tema já aparece em outros de seus livros, como "Violência e Psicanálise" (1986), "Ética e o Espelho da Cultura" (1994), e "Sem Fraude, nem Favor" (1998). Agora, porém, ele nos acompanha em um mergulho ainda mais profundo.
Apoiando-se nas ideias de pensadores do porte dos franceses Luc Ferry e Robert Dufour, do alemão Hans Blumenberg, do canadense Charles Taylor e do esloveno Slavoj Zizek, entre outros, que representam distintas, e corajosas, visões a respeito da ética, Costa se lança sobre a obra de dois escritores em geral desprezados como "menores": o inglês Graham Greene (1904-1991) e o americano Philip K. Dick (1928-1982).
A escolha da literatura como via para uma reflexão a respeito da ética basta, por si, como prova da delicadeza com que Costa enfrenta seu tema. A ética é delicada e exige, por isso, o trato de mentes delicadas também - e não o grande estardalhaço, a grande onda de acusações e de ofensas que seu debate costuma motivar. Para Costa, a ética é, em si mesma, uma noção vaga - e, justamente por ser vaga, oferece-se como instrumento precioso para pensar algumas das mais importantes questões humanas. Até porque abre caminho para o exercício sempre fértil da imaginação.
"Talvez não exista outra lucidez possível a não ser a de imaginar mundos melhores e seres humanos melhores e seres humanos melhores", diz Costa. Em outras palavras: imaginar outros mundos. Colocar o ponto de vista do outro, sempre, no centro de nossas reflexões.

Valor: A ética, ou a ausência dela, esteve no centro da recente campanha presidencial. A palavra ética tornou-se um clichê, usado sem nenhum rigor, agregando um número imenso e contraditório de significados. O que significa falar em ética no mundo de hoje?
Jurandir Freire Costa: Penso que é impossível falar sobre ética com rigor, se se entende por rigor uma definição inequívoca do termo que se está usando. A palavra ética, como liberdade, felicidade etc., é um termo vago, mas cuja vaguidade é justamente o que permite que continuemos a discutir sobre o que é bom, justo, correto e vice-versa. O problema do uso do clichê ética nos meios políticos, como você bem observa, não é a imprecisão da palavra. É a má-fé, a desonestidade, a impostura daqueles que a empregam como escudo contra a indecência com que agem na vida pública.

Valor: Em seu livro, o senhor distingue quatro correntes, quatro maneiras de encarar a questão ética. A primeira se apoia na "divinização do humano". A segunda, em uma submissão ao que se chama de "divino mercado". A terceira coloca, no lugar da ética, a ciência. A quarta, a que o senhor se alinha, procura conciliar duas perspectivas: o retorno às regras impessoais do dever moral herdado das religiões clássicas com a abertura para o que chama de "imprevisível peculiaridade do outro". Não é perigoso reduzir a questão ética a quatro modelos tão fechados?
Costa: Concordo que é perigoso, porque podemos congelar a ética em algumas de suas versões. Do mesmo modo, concordo que as várias posições têm algo em comum, ou seja, a mesma preocupação com o agir ético no mundo de hoje. Mas, enquanto Ferry se alinha à posição do iluminismo liberal, Dufour à corrente, digamos, mais libertária do marxismo e Blumenberg ao iluminismo cientificista, Agamben, Dick, Derrida, Taylor e John Caputo dão relevo à ética inspirada no messianismo judaico-cristão. Ora, o que me surpreendeu foi encontrar uma grande correspondência entre o que estes últimos autores pensam e o que é discutido nas obras de Graham Greene e Philip K. Dick. Minha intenção foi a de ressaltar essa coincidência, pois, de fato, concordo, em linhas gerais, com o que eles todos defendem.
Para Jurandir Freire Costa, o filósofo francês Luc Ferry
coloca-se aquém do horizonte ético sonhado por Greene (foto)
e Dick ao propor uma “leitura deflacionada” da tese da “secularização”,
 na qual seria suficiente respeitar os afetos familiares e
o cuidado com a ecologia, por exemplo

Valor: Apoiando-se no pensamento do filósofo francês Luc Ferry - primeira posição - o senhor fala da "divinização do humano". Nela, o sagrado se encarna nos laços afetivos e no "coração do humano", em suas palavras. O senhor parece descartar essa visão da ética. Mas, no fim das contas, não é nos impulsos de amor e de ódio que tomamos as mais graves decisões pessoais?
Costa: Os impulsos de amor e ódio são, com certeza, importantes na tomada de decisão ética. Não é por acaso que Heidegger - como discuto no tópico dedicado a Agamben - toma essas emoções como fundamentais ao ser ou ao dasein humano. Mas, no caso de Ferry, amor e ódio se encontram reduzidos à dimensão sentimental dos afetos familiares, o que não é a mesma coisa. Ferry, no fundo, defende uma leitura deflacionada da tese da "secularização". Ou seja, em vez de substituirmos a ideia de Deus pelas ideias de Estado, liberdade, revolução etc., como no iluminismo filosófico ou nas grandes filosofias da história, deveríamos contentar-nos em respeitar os afetos familiares, o cuidado com a ecologia etc. É uma perspectiva interessante, mas que, a meu ver, fica muito aquém do horizonte ético sonhado por Greene e Dick.

Valor: Partindo do pensamento do filósofo francês Robert Dufour, o senhor desenha a segunda posição - aquela em que o mundo aparece regido pela submissão ao "divino mercado" e na qual os homens se movem como rebanhos barulhentos. Essa posição não generaliza uma ética (ou ausência de ética) que está restrita às classes mais abastadas?
Costa: Esse é o problema: o público ao qual se destina a obra do autor. Dufour é um pensador ousado e interessantíssimo. Mas tenho a impressão de que ele tem em mente a situação dos indivíduos nas democracias capitalistas ricas ocidentais e na inclinação das demais sociedades para seguirem esse modelo. No caso do Brasil, estamos longe de atingir esse patamar de satisfação das necessidades básicas e de adesão à sociedade do consumismo e do entretenimento. No entanto, a cultura brasileira, nas grandes linhas, parece se inclinar para esse regime de convívio social. Não vemos, aqui, como no resto do mundo, nenhum esforço genuíno para se pensar sobre outros marcos civilizatórios. Talvez porque não tenhamos condições de imaginar o viver coletivo de forma diversa daquele que é hegemônico; talvez porque essa hipotética forma de vida renovadora surja de maneira imprevista e não previamente programada. Não sei. O que acho é que se o Brasil ainda não está imerso no ethos criticado por Dufour, nada indica que esteja se afastando dele.
"Questões sobre o sentido da vida,
sobre o agir moral,
não cabem na agenda da ciência
que se preocupa, sobretudo,
em explicar aquilo que
no mundo é passível
de controle e predição."
Valor: A terceira corrente, que se baseia no pensamento do filósofo alemão Hans Blumenberg, substitui a ética pela ciência. Fundamenta-se na ideia de que a ciência varreu da história a mentalidade religiosa. A expansão dos fundamentalismos e a forte intervenção da perspectiva religiosa nas últimas eleições brasileiras parecem, contudo, desmentir essa hipótese. O mundo não caminha, em ritmo cada vez mais veloz, nas duas direções?
Costa: É possível. Seja como for, penso que o ressurgimento do espírito de seita ou do fundamentalismo religioso atual nada tem a ver com a religiosidade à qual Blumenberg se referia. No pensamento de Blumenberg, o resíduo religioso estava presente nas teses universalistas sobre o sentido da vida, do sujeito, das coletividades, que eram o objeto da especulação das filosofias políticas e históricas. Blumenberg era um legítimo representante do materialismo cientificista do século XIX. Ele depositava uma confiança ingênua na ciência como a atividade humana capaz de orientar os indivíduos na vida moral cotidiana. Como procurei fazer ver, é isso que Charles Taylor critica de forma extremamente inteligente. Questões sobre o sentido da vida, sobre o agir moral, não cabem na agenda da ciência que se preocupa, sobretudo, em explicar aquilo que no mundo é passível de controle e predição.

Valor: A quarta posição, que o senhor abraça, busca a conciliação entre as regras impessoais da moral de origem religiosa e a abertura para o outro, isto é, para o imprevisível. Ela procura recuperar o fundo universal herdado da cultura judaico-cristã. Não seria, no fundo, uma modernização das religiões? Além disso - e a questão do aborto, tão discutida durante a campanha política, parece ser um exemplo disso: é possível preservar o respeito ao outro quando as normas religiosas se impõem com tanto rigor?
Costa: A ética messiânica de origem judaico-cristã, na forma apresentada pelos autores que elegi como operadores da análise, não deve ser confundida com as religiões institucionalizadas, ou seja, com os corpos doutrinários estabelecidos em comunidades confessionais particulares. Esses corpos doutrinários estão marcados por compromissos com as hierarquias sacerdotais, as estratégias de catequese dos crentes e com as visões de mundo próprias aos diversos tempos históricos. As normas religiosas, no sentido apontado por você, nem coincidem nem esgotam o sentido do grande dossel messiânico que está na origem da própria ideia de "respeito ao outro". Em nome do respeito ao outro podemos ser a favor ou contra o aborto. O fundamental, entretanto, é que o debate ocorra num pano de fundo que já pressupõe a ideia de "respeito ao outro" como último árbitro do litígio. Ora, a ideia de respeito ao outro seria inconcebível no mundo da justiça, da ética ou da legalidade greco-romana. Ela é de paternidade judaico-cristã. É isto que Agamben, Žižek, Derrida, Taylor e John Caputo tiveram a intenção de mostrar. É isto que considero o tesouro ético da tradição ocidental, sem que tal apreciação implique etnocentrismo intolerante, preconceituoso, xenófobo, em relação a outras tradições espirituais.

Valor: Em seu livro, o senhor trabalha com dois escritores tidos, em geral, como menores: o inglês Graham Greene (1904-1991) e o americano Philip K. Dick (1928-1982). Por que os escolheu? Seria na literatura mais leve e digestiva que se guarda o melhor espelho do humano?
Costa: Na literatura dos dois encontrei mais facilmente exemplos de conflitos éticos que corroboram a validade da ética leiga de filiação judaico-cristã. Além disso, me aventurei a abordar a literatura de Greene e Dick por não ser capaz de trabalhar gigantes da estatura de Tolstoi, Dostoievski, Kafka, Henri James, Proust, Beckett, Stendahl, Flaubert, ou os nossos Machado de Assis, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector. Estes últimos são capazes de nos fazer ver o mundo e os sujeitos de maneira inédita. Constroem a maneira pela qual nos vemos e vemos ao mundo. O trabalho, nesse caso, teria que ser mais pontual ou, então, exigiria uma perícia e uma familiaridade com a análise literária, filosófica ou psicanalítica dos textos que não possuo.

Valor: A escolha dos exemplos literários sugere a ideia de que, em nosso mundo tão conturbado, algo de melhor resiste no campo da arte. Reino da fantasia e da imaginação, a arte e a literatura se tornam, apesar disso, ou por isso, um precioso reduto de lucidez?
Costa: Não saberia dizer se a arte é mais ou menos lúcida do que a filosofia, a psicanálise, a história das mentalidades, a política, a teologia. Penso que aquilo que Rorty dizia sobre a literatura é verdade. Os artistas - por serem mais imaginativos do que a maioria de nós em matéria de reflexão sobre o sentido da vida e da ética - são capazes de oferecer visões de mundo e de pessoas mais surpreendentes, mais inauditas, mais capazes de abalar convicções culturais fossilizadas pelo hábito. Talvez isso seja a lucidez da qual você fala. Agora, talvez não exista outra lucidez possível a não ser a de imaginar mundos melhores e seres humanos melhores. O que não quer dizer seres humanos imaculados ou gessificados em modelos de conduta prêt-à-porter, sejam eles políticos, religiosos, científicos, psicológicos ou quaisquer outros de igual teor.

Valor: O senhor diz que os personagens de Greene e de Dick podem ser bons ou maus, decentes ou traiçoeiros, virtuosos ou viciosos, mas que nunca são indiferentes. A indiferença seria, no fim das contas, o grande mal de nosso tempo? A busca de uma ética seria, em resumo, a procura de uma alternativa para a indiferença?
Costa: Não posso resistir a repetir o que Dick diz sobre isso. Uma das figuras do sujeito moral esboçada por ele é a do antiandróide. O antiandróide é o antípoda do "andróide", isto é, do ser falante, consciente e racional que se torna indiferente ao outro, que usa o outro instrumentalmente e que é incapaz de fazer exceção. Acho isso especialmente feliz como injunção ética. Tomara que as pessoas se sintam motivadas a ler os dois. Há muito que aprender com quem realmente tem interesse por nossa insustentável e fascinante condição humana.
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* Reportagem por Por José Castello Para o Valor, do Rio
Fonte: Valor Econômico online, 19/11/2010

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