sábado, 20 de novembro de 2010

O PRAZER DAS PALAVRAS

CLÁUDIO MORENO

Pessoa humana (conclusão)

Se o leitor está lembrado, falávamos sobre pleonasmos – ou pretensos pleonasmos – quando interrompi nossa conversa para tratar, na coluna passada, da conveniência ou não de dar à palavra presidente uma forma feminina. Como vimos, os mecanismos da língua permitem também que o falante utilize presidenta, se quiser e se lhe cair bem no ouvido. Para deixar bem clara minha posição, tomo emprestada a frase com que meu mestre Luft costumava encerrar discussões desse tipo: eu não gosto de presidenta – mas, e os outros com isso?
Agora, já com a consciência mais tranquila, podemos voltar ao exame da expressão que escolhi como título da coluna: pessoa humana. Numa matéria especial sobre a linguagem de nossos candidatos, a revista Veja pediu a professores e gramáticos uma relação dos modismos e cacoetes mais frequentes no discurso político, analisando-os um a um de forma ponderada, sem aqueles esgares de cachorro louco que costumavam caracterizar os debates desse tipo. Com muito bom-senso, a reportagem, procura desmascarar esses mitos modernos que brotam como ervas daninhas ali onde escasseia a chuva revigorante da tradição; entre outras coisas, defende a legitimidade do risco de vida, consagrado pelos escritores, e mostra que é Português do melhor quilate combinar a preposição com o artigo que acompanha o núcleo do sujeito (“na hora da onça beber água”, em vez do artificial “na hora de a onça beber água”). O único deslize dos autores da matéria foi, a meu ver, condenarem taxativamente a expressão pessoa humana, apresentando um argumento que lhes pareceu suficiente para fulminá-la: “Existirão por acaso pessoas suínas – ou asininas?”.
Não, é claro que não, seus engraçadinhos – mas existem as pessoas jurídicas, as pessoas físicas, as pessoas divinas, etc. Na obra de nossos escritores há dezenas de exemplos em que o adjetivo humano foi usado para se opor a outros tipos de pessoas. No séc. 16, Manuel Pires de Almeida compara, na obra de Camões, as pessoas deificadas com as pessoas humanas; Camilo Castelo Branco respeita a adoração de um jovem enamorado, para o qual a noiva é uma pessoa divina, prometendo que não vai “pô-la em confronto com os lapsos das pessoas humanas”; Rubião herda a fortuna de Quincas Borba com a condição de cuidar muito bem do cachorro – cuidar dele, no fundo, “como se cão não fosse, mas pessoa humana”; e Saramago, em A Caverna, afirma “que nem tudo se encontra resolvido na relação entre as pessoas humanas e as pessoas caninas”.
Estou muito mais inclinado a admitir que foi algum motivo sutil, e não um afrouxamento estilístico, que terá levado nossos escritores a empregarem também pessoa humana no sentido genérico. Em Machado: “os romancistas, que aliás se presumem grandes analistas da pessoa humana”; “cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana”. Em Lima Barreto: “estávamos diante da mais terrível associação de males que uma pessoa humana pode reunir”; “há um cristal de pureza inalterável como núcleo eterno da pessoa humana”. Em Rui Barbosa: “Aí não há senão a altitude da pessoa humana, do mérito individual na solitária sublimidade do seu poder”. Em Drummond: “na pessoa humana vamos redescobrir aquele lugar”. Em Nelson Rodrigues: “Stalin e Hitler se juntaram contra a pessoa humana”. O leitor vai concordar que quase todos esses exemplos ficariam capengas se retirássemos o adjetivo e deixássemos apenas pessoa.
Esta mesma sutileza deve ser a responsável pela presença de idêntica combinação em outros idiomas. No Preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem, onde se lê, em vernáculo, “na dignidade e no valor da pessoa humana”, lê-se human person no Inglês, personne humaine no Francês, persona humana no Espanhol e persona umana no Italiano (que infelizmente desfigurou sua herança latina ao eliminar o H inicial...). Por que será que ela aparece também no texto das constituições, no título de milhares de livros filosóficos, jurídicos ou religiosos, nas mensagens do Vaticano, nos documentos da Unesco e da Onu? Não tenho certeza, mas suspeito que o fator determinante para o acréscimo do adjetivo limitador seja a elasticidade cada vez maior do conceito de pessoa. Os estudos sobre a inteligência e a psicologia dos golfinhos, por exemplo, levaram alguns cientistas a classificá-los como pessoas não-humanas, enquanto grupos modernos de filosofia e de ética começam a classificar os recém-nascidos, os doentes mentais e os anciãos desvalidos de humanos que não são pessoas – o que deixa claro que uma coisa não pressupõe necessariamente a outra.
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* Cláudio Moreno (Rio Grande, Rio Grande do Sul) é um professor, escritor, colunista e ensaísta brasileiro. Formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1969, Moreno obteve o título de mestre em 1977 e concluiu em 1997 seu doutorado em Letras.
Fonte: ZH online, 20/11/2010

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