segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Umberto Eco e a liga judaico-cristã


O escritor Umberto Eco

Trinta anos não são nada. Pelo menos em assuntos de polêmica religiosa. Esse é o tempo que separa "O Nome da Rosa", primeiro assalto do escritor, semiólogo e pensador bolonhês Umberto Eco à ficção espiritual, de "Il Cimitero di Praga" [O cemitério de Praga], seu novo e estupendo romance - um fenômeno de vendas (100 mil exemplares em apenas uma semana), assim como um catalisador das já agitadas águas culturais da Itália de Berlusconi.
Eco volta a enfrentar não só as acusações da Igreja, como também a revolta da comunidade judaica. A razão está em um livro no qual, página a página (são 528), o professor conduz o leitor por uma viagem trepidante ao século 19, uma excursão considerada por alguns imprecisa do ponto de vista historiográfico e que se move ao vaivém da mãe de todas as considerações: a que pinta os judeus como os urdidores ocultos e todo-poderosos do destino mundial.
A galeria de habitantes reais de "O Cemitério de Praga" não tem desperdícios: um Sigmund Freud viciado em drogas, Dreyfus, o oficial francês condenado por ser judeu, o grande patriota e escritor italiano Ippolito Nievo, ou Garibaldi. Entre nomes históricos e acontecimentos reais (desenhados com a mania detalhista habitual na prosa de Eco), o protagonista se desenvolve - "o único personagem inventado do romance", segundo o autor. É Simone Simonini, capitão turinense, memorável anti-herói e a presença mais desagradável do relato.
Antissemita convicto em pleno "ottocento", o protagonista falsifica testamentos e comercializa hóstias consagradas para missas satânicas. Sua grande obra? Fabricar as atas de uma reunião noturna inexistente entre as lápides do cemitério judeu de Praga. Nela, os anciãos rabinos das 12 tribos de Israel tecem planos para dominar o mundo. Esse documento falso serve na novela para a redação dos muito reais "Protocolos dos Sábios de Sião", panfleto antissemita que no início do século 20 serviu de justificativa teórica para os pogroms da Rússia czarista e, mais tarde, para a perseguição nazista.

Imagem da Internet
Seus detratores censuram em Eco a encenação de uma montagem histórica "falsa". A construção de uma "sinfonia maligna" que não se incomoda em interromper. A comunidade judaica e a Igreja se perguntam: um autor que não intervém na história pode evitar a perigosa ambiguidade? O jornal da Santa Sé opina que não: "Denunciar o antissemitismo pondo-se na pele dos antissemitas", escreve a historiadora Lucetta Scaraffia em "L'Osservatore Romano", "não funciona como uma verdadeira acusação. O leitor acaba por ser contaminado pelo delírio antissemita [construído por Eco]. Quando se evoca o mal, é necessário confrontá-lo ao bem, para que sirva de contraste. A reconstrução do mal sem condenação, sem heróis positivos, adquire uma aparência de voyeurismo amoral".
"A narração de Eco quer desmontar o falso à base de reconstruir essas falsidades" - escreve outra historiadora, Anna Foa, na revista mensal publicada pelas comunidades judaicas italianas. "Se os heréticos podíamos desfrutar com as bruxas de 'O Nome da Rosa', poderemos fazê-lo com a mesma inocência com o tipo de construções que alimentaram as loucuras de Hitler?" O escritor replica pragmático: "Quem escreve um manual de química também pode ser acusado se alguém o utilizar para envenenar sua avó".
A estas declarações, o rabino chefe de Roma, Riccardo Di Segni, contestou: "Penso que a mensagem soa ambígua. Não se trata de um livro científico que analisa e explica, mas de uma novela". "Minha intenção era dar um soco no estômago de meus leitores", replicou o semiólogo. "Uma violência que convenceu a outros."
Um ódio que também move Simonini, educado desde pequeno no desprezo aos judeus e às mulheres, treinado no servilismo ao poder e cegado por seu rancor pessoal: "Me dou conta de ter existido só para vencer aquela raça maldita. Unicamente o ódio aquece o coração", diz.
Entre tanta proclamação acusatória, Gad Lerner interveio no debate, nas páginas de "La Repubblica". Segundo ele, a novela está destinada a ser um clássico, porque afinal conta algo muito universal e atual. É o que explica o protagonista Simonini a um agente secreto do czar: "A divina Providência nos presenteou os judeus, vamos utilizá-los e rezar para que sempre haja algum ao qual temer e odiar". Lerner vê nesse diálogo um afã tremendamente atual: identificar os inimigos para assim definir-se como comunidade a partir do ódio ao outro.
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Reportagem por El Pais Lucia Magi
Em Bolonha (Itália) 14/11/2010
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2010/11/14/umberto-eco-e-a-liga-judaico-crista.jhtm

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