quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Das dificuldades de deixar o poder

Mauro Santayana*

Uma das meditações do imperador Marco Aurélio poderia inspirar o presidente Lula, nestas semanas em que se prepara para deixar o poder. Ele tem confessado que não é fácil voltar à planície, e essa franqueza serve para confirmar-lhe a condição humana, com suas grandezas e debilidades. Provavelmente nenhum outro brasileiro tenha vivido existência igual, ao se destacar do chão mais áspero da sociedade para assumir o cume do poder nacional. Ao ocupar a Presidência, qualquer um descobre que esse poder é limitado, não só pela Constituição mas também pelos pequenos e grandes fatos que tecem as circunstâncias de cada momento.
Marco Aurélio é uma dessas personalidades que incomodam os historiadores. Ele revelou que os seus textos se destinavam ao próprio uso, enfim, eram um manual de conduta, de regras a seguir. Elevado ao trono pelas circunstâncias do nascimento e das relações aristocráticas, Marco Aurélio viu o destino como um dever, e não parece que tenha tido outro prazer que não tivesse sido o de cumprir as suas obrigações, entre elas a de fazer as guerras.

“Volta à verdade de teus sentidos,
convoca o teu ser real,
acorda de teu sono,
entenda que o que te incomodavam eram sonhos,
vê, agora, as coisas com clareza,
presta atenção ao que revelam
os teus olhos limpos”.

Discípulo de Antonino Pio, que teve como modelo, foi escolhido seu sucessor aos 17 anos. “Breve é a vida – diz em uma de suas meditações – e o único benefício que dela podemos obter é a disposição e a ação em favor de todos”. Como imperador, Marco Aurélio governou até adoecer e morrer, no campo de batalha contra os germanos. É curioso que não tenha deixado as suas memórias de combatente, como César. Suas reflexões são de outra natureza, como se ele não sentisse prazer algum no exercício da guerra. Mas tampouco se sentia bem em Roma, com suas intrigas palacianas.
Talvez elas fossem de outro cerne, se tivesse exercido um curto mandato eletivo. Há, no entanto, pequeno parágrafo que, provavelmente, ele redigiria, mesmo se fosse governante contemporâneo, diante do fim de mandato:
“Volta à verdade de teus sentidos, convoca o teu ser real, acorda de teu sono, entenda que o que te incomodavam eram sonhos, vê, agora, as coisas com clareza, presta atenção ao que revelam os teus olhos limpos”.
Lula atuará como cidadão, ao deixar a Presidência. Mas, tendo sido responsável pela eleição de sua sucessora, ele está compelido a exercer difícil e equilibrada influência, ainda que seja indireta, sobre o desempenho do governo. Por um lado, deverá manter obsequioso silêncio diante das escolhas que ela fizer – principalmente no que se refere à nomeação do Ministério. Ele sabe que a responsabilidade final pelo êxito ou malogro do governo cabe a quem o chefia. E só quem o chefia – como ele mesmo o fez – deve decidir a quem confiar as tarefas da administração. Isso não o impedirá, no entanto, de, sendo consultado, como é previsível, dar seus conselhos, sem que sejam necessariamente seguidos.
Segundo as notícias, a presidente começa bem, ao reagir contra a insolência do presidente do Banco Central, que condicionara sua permanência no cargo à plena autonomia de ação. Um bom governante deve iniciar sua tarefa livrando-se dos insubstituíveis. Isso vale não só para Meirelles, mas também para tantos outros que se insinuam como necessários. O Brasil, disso sabe Dilma Rousseff, é grande, e há vida inteligente e comportamento ético em todas as suas regiões, tanto nos meios políticos quanto fora deles. Organizar um bom governo não é difícil, mesmo que haja problemas no início. Como dizia Getulio, “todo ministério é de experiência”. De experiência, do princípio ao fim do governo.
Ao apoiar a autonomia de Dilma na organização do governo, Lula estará – como nas recomendações que a si mesmo fazia Marco Aurélio – vendo as coisas com seus olhos limpos.
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*Jornalista. Articulista do JB digital
Fonte: JB, 24/11/2010

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