sábado, 13 de novembro de 2010

Patologias do indivíduo

VLADIMIR SAFATLE*


Um dos mantras preferidos do pensamento conservador consiste em reduzir a ideia de liberdade à afirmação do indivíduo. Repetido de maneira compulsiva, tal mantra procura impor à sociedade a crença de que "liberdade" é simplesmente o nome que damos ao sistema de defesa dos interesses particulares dos indivíduos, de suas propriedades privadas e seus modos de expressão. No entanto, esta noção de liberdade talvez seja, no fundo, uma forma muito difundida de patologia social.
De fato, sofre-se muitas vezes por não se ser um indivíduo, ou seja, por não ter as condições sociais necessárias para a afirmação de uma individualidade almejada. No entanto, sofre-se também por ser apenas um indivíduo. Há um sofrimento vindo da incapacidade em pensar aquilo que, dentro de si mesmo, não se submete à forma coerente de uma pessoa fortemente individualizada. Infelizmente, este sofrimento, em vez de funcionar como motor de desenvolvimento subjetivo, muitas vezes se exterioriza e se transforma em medo social contra tudo o que parece colocar em xeque nossa "identidade", as "crenças do nosso povo".

"Há um sofrimento vindo da incapacidade
em pensar aquilo que,
dentro de si mesmo,
não se submete à forma coerente de uma pessoa
fortemente individualizada."

Não é por outra razão que lá onde há a insistência em compreender a sociedade como um mero conjunto de indivíduos, há sempre o outro lado da moeda: a necessidade de expulsar, de levantar fronteiras contra tudo o que não porta a minha imagem. O que nos explica porque sociedades fortemente individualistas, como aquelas que encontramos nos EUA e em certos países europeus, são sempre assombradas pelo fantasma do corpo estranho que está prestes a invadi-las, a destruir seus costumes e hábitos arraigados. Não há individualismo sem lógica social da exclusão.
Por outro lado, como todos sabemos que o atomismo de ser apenas um indivíduo é dificilmente suportável, este isolamento tende, muitas vezes, a ser compensado com alguma forma de retorno a figuras de comunidades espirituais e religiosas. A vida contemporânea nos demonstrou que individualismo e religiosidade, liberalismo e restrições religiosas dogmáticas, longe de serem antagônicos, transformaram-se nos dois polos complementares e paradoxais do mesmo movimento pendular.

"Não há individualismo
sem lógica social da exclusão."



Muito provavelmente, teremos que conviver com os resultados políticos desta patologia social bipolar.
Cada vez fica mais claro como o pensamento conservador se articula, em escala mundial, através da restrição da pauta do debate social, ora apelando para as "liberdades individuais", ora para "nossos valores cristãos". Contra isso, temos que saber mostrar como o conceito de liberdade e de ação social podem ser reconstruídos para além destes equívocos.
A nosso favor, há uma bela tradição do pensamento que quer se fazer ouvir.
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*Vladimir Safatle é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e um dos coordenadores do Laboratório de Pesquisa em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip/USP). Foi professor-visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII. É autor de “A paixão do negativo: Lacan e a dialética” (Unesp, 2006), “Lacan” (Publifolha, 2007), organizador de “Um limite tenso: Lacan e a filosofia” (Unesp, 2003), além de co-organizador de “Ensaios de música e filosofia” (Humanitas, 2006), “Sobre arte e psicanálise” (Escuta, 2005) e “O tempo, o objeto e o avesso: ensaios de filosofia e psicanálise” (Autêntica, 2004).

VLADIMIR SAFATLE passa a escrever às terças-feiras nesta coluna.
Fonte: Folha online, 09/11/2010

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