Rubem Alves*
Quando distraído me encaminhava para o jardim, subindo a escada, dei-me conta — só então dei-me conta (já havia feito esse caminho muitas vezes sem me dar conta); tive a experiência de perceber que alguma coisa acontecera na minha relação com o mundo ao meu redor. Algo como “estranheza”. Antes eu e o mundo éramos um único corpo, árvores, gramados, fontes, céu, nuvens, eram prolongamentos dos meus membros. Assim são as crianças — elas correm sempre, sem precisar pensar... Heidegger diz que a condição humana é a de sentir-se “lançado no mundo” — como se eu, originariamente, tivesse vindo de um outro lugar — à semelhança do Pequeno Príncipe, lançado na Terra, vindo de um asteróide. Tudo lhe era estranho. A língua alemã tem uma palavra “umheimlich”: “heim” quer dizer lar, lugar aconchegante. E “un”, negação. Assim “unheimlich”, fora do lugar seguro do aconchego, sinistro...
Mas as crianças não se sentem “lançadas”. O mundo é brinquedo seu, amigo conhecido. Sentir-se lançado, estranho, é sintoma de decadência: o verme está comendo a goiaba.
A escada conhecida está ali, estou pisando nela, mas tenho a sensação de que existe uma desarmonia entre ela e o meu corpo. Como se eu precisasse pedir licença para que algum desnível não me fizesse tropeçar.. Meu estar no mundo é motivo do que Heidegger denominou de “sorge”, cuidado. O mundo é um lugar de perigo. Riobaldo se mete nos meus pensamentos e declara, resumindo a filosofia: “Viver é muito perigoso...”
*A propósito do Dia de Finados, publiquei na Folha uma série de aforismos sobre a morte — nada de mórbido. Poético. Elisa Lucinda, poeta amiga que havia lido os aforismos, enviou-me um outro, de Mário Quintana, delicadíssimo: "Morrer devia ser assim, um céu que pouco a pouco escurecesse e a gente nem soubesse que era o fim.”
Lembrei-me de um incidente acontecido faz 25 anos que me intriga. Meu filho Sérgio, que estudava medicina em Londrina, veio passar as férias em casa. Pegou uma doença que médico algum decifrava. Não suportava luz. A coisa estava tão preocupante que ele chegou a fazer o seu testamento. Eu tinha viagem marcada. Fui para São Paulo levando comigo a preocupação. Aproveitei o tempo vago para ir a uma loja de discos. Vi um longplay e comprei. Fui tomar lanche com um amigo. Enquanto esperava abri o embrulho do LP. Vi e estremeci. O LP era a obra de Mahler Canções de crianças mortas... Que impulso estranho me fizera escolher essas canções? Horrorizado, dei-o imediatamente para o amigo. Mas o medo me acompanhou. Com tantas centenas de LPs para escolher, que surto de inconsciência me fizera escolher aquele? Agora, passado o tempo, posso ouvi-lo com tristeza.
O Dia de Finados me fez lembrar uma mulher que mudou a minha vida. Minha primeira namorada, lá no Rio de Janeiro. Era filha do pastor. Por razões sentimentais comecei a frequentar a igreja, embora seu pai fosse um pregador medíocre. Era um namoro calvinista, avanços mais ousados só depois de muito tempo, sob o olhar complacente da mãe dela, mulher de um olho marrom e outro verde. Não sei quem eu amava mais, se a filha ou se a mãe. Era poeta, a mãe. Publiquei dois dos seus poemas no meu segundo livro de memórias, O sapo que queria ser príncipe. Não deu certo. Ciúmes, a praga dos apaixonados. Terminamos chorando. Passados cinqüenta anos encontrei-me com sua prima que me disse que ela estava muito doente, pra morrer. Sugeriu-me telefonar.
Quem sabe memórias do primeiro amor teriam poderes curativos. Telefonei. Ela atendeu. “É a Débora?” — esse era o seu nome. “— É”. “ — Aqui é o Rubem, que foi seu namorado...” Ela não acreditou. Resolvi então dizer coisas que só nós dois sabíamos. Disse que nossa música favorita era o **“Verão Indiano”. Recitei poesia: “A vida, manso lado azul algumas vezes, algumas vezes mar fremente, tem sido para nós um manso lago azul sem ondas nem espumas...” Tudo inútil. Logo depois ela morreu sem ter pego na minha mão pelo telefone...”
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 14/11/2010
Imagens da Internet
Busquei na Internet todo a poesia que o Rubem cita em sua crônica.
Busquei na Internet todo a poesia que o Rubem cita em sua crônica.
CISNES
Júlio Mário Salusse*
A vida, manso lago azul algumas vezes,
algumas vezes mar fremente,
tem sido para nós constantemente
Um lago azul, sem ondas nem espumas.
Bem cedo quando, desfazendo as brumas
Matinais, rompe um sol vermelho e quente,
Nós dois vogamos indolentemente,
Como dois cisnes de alvacentas plumas.
Um dia um cisne morrerá, por certo...
Quando chegar esse momento incerto,
No lago onde talvez a água se tisne,
Que o cisne vivo cheio de saudade
Nunca mais cante, nem sozinho nade,
Nem nade nunca ao lado d'outro cisne.
___________*Júlio Mário Salusse (Bom Jardim RJ 1872-1948) Sua produção é reduzida, mas nem por isso lá muito preciosa. Destacou-se com o soneto dos cisnes mas não o superou em nenhum outro. Foi o suficiente, porém, para situá-lo entre os nomes de relevo do parnasianismo, o que já é bastante coisa.
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