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Para além dos clichês
Quando escreveu sua biografia de Clarice Lispector, o americano Benjamin Moser tinha um objetivo em mente: apresentar para o público americano uma escritora que considerava valiosa. Quando conversou com Zero Hora pela primeira vez, em janeiro de 2010, Moser se dizia feliz com essa repercussão e que a mera publicação da obra em português era um sonho muito além das suas expectativas. Passados 10 meses, o livro já esgotou três edições e vendeu, segundo sua editora, 20 mil exemplares. Na entrevista a seguir, Moser fala sobre a grande repercussão da obra no país e sobre estar coordenando novas traduções de Clarice em inglês:
Zero Hora – À época do lançamento da edição brasileira de Clarice, falando a ZH, o senhor disse que ter o livro publicado no país já ultrapassava as suas expectativas. Como avalia a sua repercussão no Brasil?
Benjamin Moser – Apesar do sucesso nos EUA e na Inglaterra, eu de fato não sabia como os brasileiros iriam reagir, porque há uma série de livros sobre Clarice no país, e essas coisas são muito difíceis de se antecipar. Quando cheguei a São Paulo, no início deste ano, e vi o interesse despertado pelo lançamento, fiquei admirado. Acho, claro, que havia um certo interesse pelo fato de não ser apenas a primeira biografia em inglês de Clarice, mas, como me informou um professor mais tarde, a primeira biografia em inglês de qualquer autor brasileiro escrita por um estrangeiro. Agora, essa curiosidade é útil apenas no início, porque, se o público não gosta, a obra acaba morrendo aí. Mas foi o contrário. A recepção empolgada me deixou muito grato pessoalmente e muito contente pela própria Clarice, por ver que o interesse por ela não parou de crescer.
ZH – A recepção entusiasmada o surpreendeu, como estrangeiro?
Moser – Há várias respostas que eu poderia dar a essa questão. Primeiro porque, no Exterior, por mais que sejam apenas estereótipos, a imagem do Brasil é ligada às praias, à Amazônia etc. O fato de alguém de fora mostrar uma face artística e intelectual do país é empolgante para as pessoas. Por outro lado, muitas haviam me avisado: “Cuidado, você está tocando em uma glória nacional, e as pessoas vão ficar chateadas. Dependendo do que você escrever, não vão gostar do fato de você ser estrangeiro”. Foi totalmente o contrário disso, o que, para um escritor, é uma grande recompensa. Trabalhei muitos anos nesse livro, sozinho, sem promessa de publicação por alguma editora, sem saber se iria dar certo, me submetendo a acumular uma dívida financeira enorme. É por isso que sou tão grato pela recepção aqui no Brasil.
ZH – Três décadas depois da sua morte, a obra de Clarice é mais conhecida e reverenciada do que quando ela esteve viva?
Moser – Muito mais. A irmã dela, Tânia, me comentou que achava uma pena Clarice não ter visto o quanto sua obra havia se tornado conhecida. Mesmo quando ela se tornou mais conhecida, no fim da vida, era em meio a artistas, professores, intelectuais. Não havia essa quase unanimidade nacional em torno dela.
ZH – No seu livro, o senhor rastreia as relações entre Clarice e uma visão mística judaica que pode ser encontrada também em Kafka, mas ao mesmo tempo ressalta o quanto a obra da autora era fundamentalmente brasileira, apesar de fugir do exotismo tropical que Jorge Amado tornou conhecido mundo afora.
Moser – Ela própria fazia questão de falar isso. Acho que talvez tenha sido por isso que o meu livro despertou tanto interesse nos EUA e na Europa. As pessoas fora do Brasil esperam algo meio Jorge Amado, uma coisa de banana-da-terra, Carmem Miranda, e Clarice não é isso. Ela é intimista, focada no drama do ser humano. Mas, ao mesmo tempo, há ligações na obra dela – que não são óbvias, já que ela fazia questão de não ser óbvia – com muitas das correntes filosóficas, políticas e culturais do Brasil. Desde o início, ela se vinculou a outros escritores brasileiros, como o mineiro Lúcio Cardoso, como Erico Verissimo, como autores cariocas e pernambucanos. O estranho é que ainda hoje alguém me mandou uma pergunta na internet: “Clarice era brasileira?”. Eu acho isso tão estranho, porque é uma pergunta muito comum, que me fazem muito, quando não fariam a mesma questão em se tratando de Erico, Drummond ou Machado de Assis. Não tenho realmente uma teoria sobre isso, mas é algo que me chama muito a atenção.
"Ela procura o que está além da vida diária,
e acho que por isso ainda vai ser lida
dentro de cem anos."
ZH – Isso não seria um resquício do mistério ou da incompreensão que sempre cercaram Clarice? Muitos autores comentam que durante os anos 1970 a obra de Clarice era vista pela esquerda como uma obra burguesa ou alienada por não se dedicar ao “fato social”, como o senhor lembra na biografia.
Moser – Acho que é uma coisa muito difícil para a gente hoje imaginar o que era a polarização, não apenas no Brasil, mas na América Latina, à época. Ou você era comunista da linha dura, quase estalinista, como Oscar Niemeyer, por exemplo, ou você era aliado com a ditadura militar. Não havia opção, ou meio-termo. Acho um alívio não haver mais essa polarização, que não ajudou nada em termos de arte ou literatura, a não ser para produzir clichês, como o camponês em revolta, aquela coisa que a gente lê hoje em dia e quase não acredita – porque é horrível.
ZH – O senhor passou várias temporadas no Brasil para elaborar o livro. Chegou a visitar Porto Alegre buscando rastrear a amizade, retratada no livro, entre Clarice e o casal Mafalda e Erico Verissimo?
Moser – Sim, mas Mafalda morrera pouco antes de eu começar, o que foi uma pena. Me socorri da gaúcha Vera Morganti, que havia feito uma entrevista muito interessante com a Mafalda e que foi publicada em livro (Confissões do Amor e da Arte, Mercado Aberto, 1994). O curioso foi que, no lançamento do livro em Washington, veio se apresentar a mim, em inglês e sem sotaque nenhum, a Clarissa Verissimo. Fiquei atônito de vê-la, porque na biografia a menciono, mas somente no período em que ela tinha 18 anos.
ZH – No livro, o senhor aborda o fato de Clarice ter uma personalidade múltipla que, de alguma forma, reflete muito da complexidade brasileira: é uma judia imigrante, que cresce no Nordeste do país, muda para a região central, conhece o mundo em longas viagens... Mas essas facetas se diluem em um amálgama, em uma identidade única, não?
Moser – É o que eu acho. Tentei enfatizar dois aspectos: a sua “judaicidade”, digamos, e o fato de ela ser profundamente brasileira. Achei que no Brasil os livros existentes, com poucas exceções, não haviam entendido o peso do judaísmo na família dela e em sua formação. E por outro lado eu estava escrevendo este livro para um público internacional, não brasileiro. Queria explicar o que era o Brasil, quem eram os escritores, os políticos, quais as correntes intelectuais da época. Mas, como ela não era óbvia, não era de assumir rótulos, foi mais um trabalho de contextualização do que de explicação. Porque a Clarice fez parte e não fez parte das coisas, ao mesmo tempo. Isso é o que mais me interessa nela: ela está dentro e fora.
"A questão mística em Clarice,
aquela sede de se vincular ao que é mais verdadeiro na vida,
aquele drama de A Paixão Segundo G.H.,
a ânsia de se abrir
e procurar o que há de mais verdadeiro no mundo,
é isso o que, na minha visão e na de muitos,
a eleva acima das preocupações políticas, de moda,
essas coisas que vêm e vão com o tempo."
ZH – Isso é algo que também se reflete na obra dela, não? Uma escrita que vai ao âmago, ao mais profundo, mas com aquele distanciamento, aquela lucidez de quem olha de fora.
Moser – É claro. Mas esse olhar de fora acho que todo mundo entende. Se ela tivesse sido, por exemplo, uma filha de japoneses imigrantes em São Paulo, ou portugueses, sei lá, qualquer coisa, talvez tivesse tido isso também. Mas qualquer pessoa que tenha estado numa festa na qual não conhece ninguém e fica meio encostado na parede, olhando, entende essa situação. Para mim, esse é um dos fatores que explicam a popularidade dela.
ZH – O olhar místico de Clarice, seu anseio metafísico, que é analisado em seu livro, não seria também de alguma forma outro elemento que explica essa popularidade?
Moser – Acho que sim. A questão mística em Clarice, aquela sede de se vincular ao que é mais verdadeiro na vida, aquele drama de A Paixão Segundo G.H., a ânsia de se abrir e procurar o que há de mais verdadeiro no mundo, é isso o que, na minha visão e na de muitos, a eleva acima das preocupações políticas, de moda, essas coisas que vêm e vão com o tempo. As perguntas de Clarice, “De onde viemos?” e “Para onde vamos?”, são as mesmas que todos fazem, em todos os países, em todas as línguas. Acho que é isso que a separa da literatura digamos mais “jornalística”, que explica quem é o prefeito de Porto Alegre e por que ele está abrindo uma rua em determinado bairro. Ela procura o que está além da vida diária, e acho que por isso ainda vai ser lida dentro de cem anos.
ZH – A repercussão do livro no mercado norte-americano despertou novo interesse pelas traduções de Clarice em língua inglesa?
Moser – Esse é um dos meus grandes orgulhos. No Brasil, a reputação dela já era seguríssima quando iniciei o projeto. No Exterior, era preciso que ela fosse apresentada. E agora tenho a felicidade de dizer que estou editando uma nova série de traduções, por uma editora de Londres e outra de Nova York. Vamos relançar a obra completa da Clarice, porque nem todas as traduções anteriores em inglês são boas. Vejo isso como a outra metade do trabalho a que me dediquei com a biografia.
ZH – Além de coordenar o projeto, o senhor está responsável por alguma tradução?
Moser – Por enquanto, não. Já traduzi muito a Clarice nos últimos anos. Como você sabe, em português, ela tem uma voz. A Clarice de um conto escrito aos 18 anos já é a mesma que escreveria A Hora da Estrela quando estava morrendo. Estou trabalhando com vários tradutores para que, numa reunião deles, possa-se criar uma voz única, unívoca, também em inglês.
_____________________Reportagem por CARLOS ANDRÉ MOREIRA Fonte: ZH online, 15/11/2010
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