sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Bate-papo animal: seis fábulas de Esopo

Eliana Cardoso*

Ponto e Vírgula:
Bichos falantes são ótimos para protagonizar rápidos
e expressivos cortes no processo da vida humana,
para o bem ou para o mal,
para a gente rir ou se aborrecer.

Em entrevista a "O Estado de S. Paulo" (19/9), Fernando Henrique Cardoso disse que a academia fala muito sobre livros quando deveria falar e escrever sobre o processo da vida. Quem foi rei sempre é majestade e, por isso, hoje não falo de livros, mas da vida como ela é. Para tanto, lanço mão de meia dúzia de fábulas de Esopo.
Dizem que aquele grego famoso foi escravo contador de histórias por volta do ano 500 a.C., e não há indícios de que tenha escrito qualquer coisa, nem mesmo e-mails. Portanto, estou seguindo ao quadrado o conselho de não falar de livros, pois a referência é o loroteiro de feira que nunca teve sequer um mísero blog. Um momento. Noblesse oblige: devo confessar que Demétrio de Faleo reuniu as fábulas de Esopo em 325 a.C. e, entre 1465 e 1501, imprimiram-se em latim 150 edições distintas da obra.
Pronto. Não falo mais de livros, mas preciso mencionar as ilustrações. Se você gosta delas, a Biblioteca Digital Mundial disponibiliza a segunda edição de Augsburg das "Fábulas de Esopo" (traduzidas do latim para o alemão por Heinrich Steinhöwel e ilustradas com 208 xilografias). Você pode folhear a obra na web: www.wdl.org/pt/item/28/pages.html#volume/1/page/1 . As ilustrações, talhadas com linhas de contorno forte em volta dos personagens, usam o espaço em branco em vez de ornamentos e quase nada de paisagem ou perspectiva.
As fábulas não têm direitos autorais e podem ser apropriadas por qualquer um, inclusive pela sua colunista. Escolho seis ao acaso e as traduzo para o brasileiro.

I. Canoa furada

Dona Erenice prometeu a Seu Vinicius viagem de primeira classe:
- Monta nas minhas costas, porque vamos atravessar o São Francisco.
- Chispa, sapo alazão. Com Deus adiante, todo mar é chão.
- Agora sim, peguei velocidade. Olha a ooonda.
- Devagar com o andor, corisco chinfrim. Não quero escorregar e cair na água.
- Fica frio, maricas.
- Tá balançando muito.
- Não me agarre.
- Estou escorregando!
- Despega, grudento!
- Eu caio!
- Solta!
- Socorro!
- Xiiiiiii...
- Valha-me, meu São Benedito! Lá vem o gavião que engole muitos bichos com uma bicada só.
- E quem foi que te mandou dar com a língua nos dentes e fazer escarcéu?

II. Tá tudo dominado

A ratazana recebe a amiga em seu palácio: Sei que você gosta de queijo. Mandei vir de Sampa City. É tudo francês: camembert, roquefort, chèvre e Saint-André. Obrigada, querida. Nunca antes neste país se viu tamanha fartura. Opa! O que foi? Acho que escapamos de boa. Vamos, bebe. É Bordeaux de boa safra. Hum... Nunca provei igual. Cuidado! O que foi agora? Santa protetora das dentuças sem mãe! É o celular. Tem jornalista na linha. Tudo bem. Tudo bem? Com você, tudo bem, mas e eu, como fico? Vovó dizia que galinha que anda com pato morre afogada. Fica fria, companheira. Passada a eleição, a oposição sossega.

III. À mesa

- Ah. Que delícia esses nacos de carne que pesco no fundo da garrafa.
- Isso não se faz.
- Como não? O que você me diz do jantar na semana passada, quando me serviu a sopa no prato raso?
- Por essa e por outras é que não aceito mais convite de senador. Nem pra cafezinho.
- Te cuida, gorducha. Andam dizendo que desta vez não é café pequeno.

IV. Eu sou a tua água

O lobo mau vê a cabritinha na beira do rio.
- Não perde por esperar quem suja a água que bebo.
- Seu lobo, me desculpe, mas água não sobe morro e bebo abaixo do senhor.
- Não me venha com histórias, cabrita vadia, pois sei que há um ano me difama.
- Que é isso, seu lobo? Só tenho seis meses.
- Então foi tua mãe. A cafetina anda fazendo fuxico.
- Não fale mal da minha mãe.
- Ah, não? Agora é a hora. O pão de amanhã a Deus pertence.
- Sei não, seu lobo.
- Até sapo mordia, se tivesse dentes.
- Me deixa.
- Vem logo, minha cabritinha.
- Ai, seu lobo, não faz assim.
- Ai, como me babo todo com carne tenra.
- Faz isso não, seu lobo.
- Como não? Eu sou a tua água.

V. Factoide

A formiga pertence ao bestiário clássico da luta moralizante contra cigarras e mosquitos. No passado, o Brasil difamou a saúva, mas hoje a formiguinha está no Partido Verde.
Enquanto ela anda descalça, se alimenta de migalhas e só toma água, a mosca se gaba:
- Voo com os pássaros. Visito palácios, me alimento sem esforço e só bebo champagne.
- Tô sabendo. Mas tem gente se dando ainda melhor do que a senhora. Já ouviu contar que a cigarra se juntou a uma banda de rock e tá cheia da grana?
- E daí? Meu negócio é outro.
- Quer saber o que eu penso?
- Não me interessa.
- Você precisa se proteger.
- Estou blindada contra espanadores.
- Não seja antiga. O perigo agora mora nos transgênicos.
- Não estou pra conversa fiada.
- Acho que tua irmã, a mosca azul, te mordeu.
- É factoide.

VI. Bate-papo animal

- Vai jumento, reparte o butim.
- Excelência, cá estão três partes iguais.
- Jumento imbecil. Igualdade não é justiça. Por essa e outras, lhe torço o pescoço.
O leão barbudo cumpre o prometido, torce o pescoço do jumento, lança o bicho no calabouço do esquecimento e continua:
- Pronto. Esse já era. Sua vez, raposa. Reparte.
- Aqui está, excelência. Primeiro, a parte do leão: o dorso, as coxas, os quadris, o pescoço e três patas. Para mim, a pata esquerda dianteira.
E prepara a retirada, tendo ouvido o papagaio: mesmo quem aprendeu a repartir com sabedoria nunca deve se esquecer que Deus é grande, mas o mato é maior.
Acabou-se o que era doce. Tendo traduzido as fábulas do alemão, que tinham sido traduzidas do latim, que foram traduzidas ainda antes do grego, faço uso da precisão acadêmica ao dar a palavra final ao coro da floresta. Espero que o leitor possa ouvir ao longe o berimbau e o rufar do tambor, enquanto a bicharada canta: "Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu".
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*Eliana Cardoso, economista, escreve semanalmente neste espaço.
Fonte: Valor Econômico online, 01/10/2010

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