domingo, 10 de outubro de 2010

Começar tudo de novo...

Rubem Alves*
Imagem da Internet - birches

Dentro da minha alma há um bosque de “birches”. “Birch” é uma árvore modesta que conheci nos Estados Unidos e me encantou. Fui ao Google à procura do seu nome em português. O “doutor sabe-tudo” disse que se trata de uma variedade da nossa “bétula”. Mas eu nunca havia visto uma bétula. Talvez porque elas só cresçam nas montanhas frias do Sul, onde a neve cai de vez em quando. Há belezas que precisam de muito frio para desabrochar.
Eu as vi pela primeira vez quando estudei nos Estados Unidos. Era o ano de 1963, mês de dezembro, algum dia entre Natal e Ano Bom. Eu fazia uma viagem num trem noturno, era inverno e havia nevado. De manhã acordei no meu beliche, gozei por alguns minutos do sacolejo do trem e então abri a veneziana. O que vi foi um cenário que nunca tinha visto antes: os campos cobertos de neve, o trem resfolegando através de bosques de troncos brancos que não terminavam nunca e a luz do sol se filtrando tímida e inclinada entre as árvores. É fácil identificá-las: entre as árvores de tronco negro ou cinzento, elas são as únicas de tronco branco. Suas cascas tem uma peculiaridade: são cobertas por uma infinidade de “peles” delicadas, finas e flexíveis quanto peles humanas. Apaixonei-me por elas e tentei mesmo trazer suas sementes para o Brasil. Em vão. Os entendidos me explicaram que as sementes de certas árvores que crescem em regiões frias precisam passar meses hibernando e só acordam para a vida quando o degelo chega. Tentei imitar a natureza: pus as sementes no freezer, mas não adiantou. Elas não germinaram. O que consegui trazer para o Brasil foram alguns pequenos galhos brancos e alguns pedaços de casca que tenho guardados numa gaveta.
Há alguma coisa mágica nos “birches”. Algo neles que nos faz ver outras coisas. O fato é que eles seduzem pintores e poetas. O pintor Welliver (1929-2004) as colocou em muitas das suas telas. Não resisti: comprei um dos seus livros de arte só para tê-las, embora fosse caro.
Os “birches” têm uma peculiaridade; eles tem galhos longos e flexíveis que se curvam até o chão dobrados pelo peso da neve que neles se acumula até que ela, a neve, derretida pelo calor, escorregue dos galhos curvados onde estava acumulada, libertando-os para voltarem à sua posição natural.
Os meninos, valendo-se dessa flexibilidade dos “birches”, agarram-se ao tronco vertical, vão subindo, o tronco se curva, dobra-se em arco até voltar ao chão. Os meninos, então, soltam o tronco que volta à sua posição ereta, vertical, apontando para os céus. E aí a brincadeira começa novamente, indefinidamente...
Um dos poemas mais famosos de Robert Frost é uma meditação metafísica sobre os “birches”, em especial os “birches” curvados pelos meninos. Metafísica é uma palavra incomum, filosófica. Mas eu explico: metafísica é um jeito de pensar à procura de funduras.
“Quando eu vejo as “birches”, ele diz, “curvadas para a direita e para a esquerda no meio das árvores retas e escuras, eu gosto de imaginar que algum garoto andou balançando nelas.”
O que há é uma árvore solitária. Mas os olhos do poeta vêem um menino pendurado num dos seus galhos, balançando para lá e para cá...
E então, depois de uma longa meditação – descrevendo os blocos de neve que escorregam dos galhos curvados para explodirem no chão ele diz: “Você pensaria que a catedral que sustenta os céus se estilhaçou.”
E conclui: Como os meninos que sobem nas “birches”, “eu gostaria de fugir da terra, mas só por um tempinho, para voltar a ela e começar tudo de novo, porque a terra é o lugar certo para amar. Não conheço melhor lugar... Eu gostaria de subir numa árvore de “birch” na direção dos céus, até o momento em que a árvore não agüentasse mais e se curvasse colocando-me de novo no chão...
Isso seria bom: subir na direção dos céus para de novo voltar...
Nada melhor que simplesmente ser um balançador de birches...
Eu também gostaria de voltar a essa terra, o lugar certo para amar...”
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 10/10/2010

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