sábado, 9 de outubro de 2010

A realidade da vida celibatária: reflexões de Henri Nouwen


"Durante nossos últimos dias juntos, Henri (foto) compartilhou a crise espiritual-emocional que caiu sobre ele um ano e meio antes. O conteúdo – ou melhor, o abismo vazio – de sua depressão era claro: a solidão do celibato."

A reflexão é de Richard Sipe, conselheiro em saúde mental clínica, que viveu por 18 anos como monge beneditino e sacerdote. Sipe fez sua formação específica para tratar de padres católicos com problemas de saúde mental. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 01-10-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Recentemente, eu estava no processo de limpar alguns arquivos e encontrei uma carta de julho de 1991 de Henri Nouwen. Ele e eu passamos um ano juntos durante meados dos anos 1960 em Topeka, Kansas, nos programas de formação da Fundação Menninger para conselheiros do clero. Nós mantivemos um contato casual depois disso. Ele se mudou para lecionar em Notre Dame, Yale e Harvard e viajou por um mundo atribulado, enquanto eu me estabeleci na prática clínica, na vida de casado e no trabalho em tempo parcial em um seminário católico, em faculdades e em uma escola de medicina em Baltimore.
Na época em que Henri escreveu essa carta, ele já havia se tornado uma enorme fonte espiritual por meio dos seus escritos, retiros, palestras, cursos e contatos pessoais. A maioria dos seus 40 livros haviam sido publicados. Em contraste, eu recém havia publicado (em 1990) meu primeiro livro, "A Secret World: Sexuality and the Search for Celibacy" [Um mundo secreto: Sexualidade e a busca do celibato].
Em fevereiro, eu tinha ido para a Daybreak – uma comunidade da L'Arche [rede de comunidades internacional para pessoas com deficiências de desenvolvimento], perto de Toronto – para passar o tempo de um retiro com Henri. Enquanto eu estava lá, ele estava trabalhando no livro "A volta do Filho Pródigo" (Paulinas, 1998) (na minha opinião, o livro mais pessoalmente integrado de toda a sua obra). Nós falamos sobre os seus escritos, e ele me deu uma cópia do poster de Rembrandt (imagem) que significava muito para ele.
Esse não era um retiro de silêncio, e por isso eu acompanhado Henri em sua ronda diária de tarefas, como visitar seus amados irmãos e irmãs – pessoas com deficiência de desenvolvimento das casas da comunidade de L'Arche. Lembro-me bem das nossas conversas diárias. Henri estava focado na ideia de "Communion" – prova do seu processo e fecundidade criativos.
Isso surgiu em conferências noturnas e em reuniões de almoço com os pastores locais e em uma palestra formal em Toronto. Experimentar todos os seus ministérios facilitou a tarefa de decifrar onde seus desejos internos estavam naquele momento – em ouvir as palavras "tu és meu Amado, em ti está o meu agrado". Seus dois livros publicados em 1992, "Life of the Beloved" [Vida do Amado] e "A volta do Filho Pródigo" confirmaram essa observação.
Durante nossos últimos dias juntos, Henri compartilhou a crise espiritual-emocional que caiu sobre ele um ano e meio antes. O conteúdo – ou melhor, o abismo vazio – de sua depressão era claro: a solidão do celibato.
Depois de renunciar às suas indicações como professor e fazer um compromisso com a Daybreak, pela primeira vez, ele se abriu a uma relação e amor humanos que ele nunca tinha experimentado. Ele foi confrontado consigo mesmo como nunca antes – sua sexualidade e seu celibato estavam nus e desprotegidos. Foi uma dolorosa experiência emocional durante a qual ele manteve um diário.
Ele queria falar sobre duas coisas. A primeira era se ele deveria publicar o diário que registrava uma luta violenta e íntima da alma como essa. Eu disse que seria útil para muitas pessoas que sofrem. Ele finalmente concordou com seus muitos amigos que tinham o mesmo pensamento, e "A Voz Interior do Amor" (1996) foi publicado quatro meses depois da sua morte.
Henri estava ciente do meu trabalho clínico com sacerdotes e seminaristas. Ele e eu nos encontramos em Baltimore, enquanto ele ainda ensinava na Universidade de Yale, e eu ensinava no St. Mary's Pontifical Seminary.
Nós compartilhávamos nossos interesses atuais. Os de Henri eram a meditação e a espiritualidade. Os meus eram o celibato e a sexualidade. Henri era a pessoa autointitulada "inquieta, nervosa, intensa" que me pediu algum encorajamento com relação às palestras sobre meditação que ele iria apresentar aos seminaristas. Ele manifestou surpresa com as minhas observações sobre a quantidade de atividade sexual entre os alunos e professores.
Em 1991, o segundo tema sobre o qual ele queria falar era o celibato e a orientação sexual. Principalmente, suas perguntas eram sobre a orientação. O que ela realmente é? É possível alterá-la? Quais são as origens? Quais são suas implicações sobre o celibato? Como isso afeta a espiritualidade? Ele não estava bem em um momento de resolução pessoal, então.
Mas Henri era genuíno. Ele era exatamente o que ele parecia ser – um padre lutando por integridade, esgotando-se no serviço aos outros.
A depressão de Henri – que ele chamou de "uma luta por meio da angústia para a liberdade" – lembrou-me do relato de Thomas Merton do seu caso de amor com "M" depois de tantos anos no mosteiro (que se encontra no Volume 6 de "Learning to Love: Exploring Solitude and Freedom" [Aprendendo a amar: Explorando a solidão e a liberdade]). Merton escreveu emotivamente sobre a sua solidão, sua desolação e os conflitos em torno ao celibato desencadeados por seu relacionamento com ela.
Ambos os padres (Merton e Henri) passaram a lidar com os níveis mais profundos de sua sexualidade por meio da conquista e da perda de um relacionamento amoroso. Essas profundidades não podem ser compreendidas sem espremer a vida fora da solidão e abraçá-la até que ela torne o isolamento (a solidão verdadeira) cheio de significado. As vidas de muitos santos mostram que a depressão está envolvida nesse processo.

"Eu me aproximo da
sarça ardente do celibato religioso
com minhas sandálias na mão e
com um sentimento de vocação."
Henri Nouwen
Depois que eu voltei para casa, enviei para Henri cópias de duas palestras que eu havia dado: "Espiritualidade e integridade", no Seminário Teológico de Princeton, no dia 4 de dezembro de 1990, e "A agenda celibatária-sexual", para o Encontro Nacional por um Sacerdócio Renovado da Corpus [Associação para o Sacerdócio Inclusivo], no dia 22 de junho, em Nova York.
Esse contato fez com que ele me escrevesse.
Ele disse que havia gostado da palestra de Princeton e que "aprendi muito com ela". Mas ele tinha reservas com relação à palestra de Nova York. Depois de afirmar que tinha muitas questões que ele gostaria de conversar mais a respeito, ele escreveu:

"Eu também acho que há uma dimensão sobre a questão do celibato que está ausente em sua apresentação, e, pela sua ausência, isso dá à sua apresentação um caráter 'político' excessivamente forte. De alguma forma, eu acho que nós realmente precisamos pensar mais profundamente sobre o mistério da comunhão e começar a falar de uma forma nova sobre a sexualidade a partir daí. Eu certamente ainda não estou em condições de fazer isso e me encontro sem palavras em torno dessa área muito sagrada. Mas eu acho que nós temos que ir além do apontamento das muitas fraquezas e fracassos na vivência de uma ética sexual confiável, rumo a uma redescoberta do sentido profundo do 'vacare Deo' [estar vazio de Deus]."

Henri não foi o primeiro a questionar o meu sentido de mistério. Catherine de Hueck pensou que as minhas apresentações durante um retiro que eu dei na Madonna House – uma comunidade católicas de leigos homens – em 1961 foram "excessivamente psicológicas". Mas sempre me baseei na máxima de Aquino de que "a graça supõe a natureza" e no pronunciamento patrístico: "A glória de Deus é que o homem seja totalmente humano".
Henri e eu nunca tivemos a chance de ter essas conversas.
Não se perde nada da perspicácia de Henri quando eu digo que a Igreja está sofrendo a sua crise atual sexual-celibatária precisamente porque ela não tolerou falar muito sobre as dimensões mental, emocional e sexual do celibato.
Assim, muitos abusadores sexuais têm palavras para as dimensões espiritual, misteriosa e mistagógica do celibato. Mas eles não praticam o celibato. Eles não podem tolerar o exame da realidade da sua humanidade, sexualidade ou comportamento. Muito do que falam sobre o mistério parece bom e pode ser útil no giros mentais necessários para um homem ou uma mulher lutar contra – como o Pe. Robert Barron chamou-a em 1999 – a expressão "irracional, inatural e excessiva" do amor que o celibato religioso está destinado a ser.

O celibato é um processo.
Se for pretensão, é hipocrisia
– o mais grave pecado religioso.

Muitos clérigos consideram inconveniente, mal educado e até mesmo voyeurista falar sobre as práticas sexuais de bispos e padres. Somente quando a transparência e a responsabilidade tornarem-se realidade, seremos capazes de "ir além" de falar sobre as falhas, como Henri queria que eu fizesse.
Na verdade, enfrentar a dura verdade sobre a sua humanidade e sexualidade é exatamente o que Henri tinha que fazer na sua depressão. Sua agonia e luta psicológicas eram o teste de sua jornada celibatária.
Henri morreu antes de encontrar seu caminho com palavras em torno do que ele chamava de "esta área muito sagrada". Mas ele e Merton ajudaram a definir o território que precisa ser escavado para que celibato seja entendido e praticado – as emoções da solidão, da privação e da perda.
O celibato é um processo. Se for pretensão, é hipocrisia – o mais grave pecado religioso.
Nathaniel Hawthorne era um observador atento do vício e da virtude clericais e podia escrever com autoridade que – como está escrito na introdução do livro "A Letra Escarlate" – a pessoa "que parecia ser a mais justa pode se revelar como a maior pecadora".
A crise dos abusos de menores por parte de bispos e padres é a chave que está abrindo a porta para a realidade da prática do celibato. É aí onde o verdadeiro mistério será revelado – na verdade e nos fatos.
Henri terminou a sua carta para mim com uma espécie de endosso:

"Eu, pessoalmente, acho que você tem uma grande vocação nessa área, especialmente por ser muito articulado e bem informado sobre os muitos fatos e números das questões envolvidas. Você tem coisas importantes a dizer, e eu tenho a sensação de que redescobrir ou reviver a dimensão mística da vida sexual pode ajudar você e eu e todos nós a crescer em direção a uma recuperação da sacralidade da vida.
Eu me aproximo da sarça ardente do celibato religioso com minhas sandálias na mão e com um sentimento de vocação. Eu tenho um sentimento do mistério da sexualidade-celibato, mas também sei que temos que construi-lo sobre as bases sólidas da realidade – as dimensões mental, emocional e sexual do processo e da prática do celibato."
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Fonte: IHU online, 09/10/2010

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