"Consolidação democrática é vantagem brasileira entre Bric"
André Singer:
realinhamento das bases petistas começou em 2002,
ampliou-se em 2006 e
consolidou-se nesse pleito
Para o cientista político André Singer, as eleições de 2010 referendam sua hipótese de que o Brasil vive um realinhamento eleitoral. As classes médias tradicionais, que estiveram na origem do PT, reagiram à emergência de uma nova classe média, saída da combinação de políticas de transferência com políticas de distribuição de renda, e engrossaram as fileiras do candidato tucano, José Serra. Em compensação, as bases petistas foram fortalecidas por pessoas que foram puxadas para cima da linha de pobreza. Num intervalo de uma das exposições feitas na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, na quinta-feira, Singer disse ao Valor que, independentemente da polarização política que ocorre na sociedade, esses programas sociais, à semelhança do Social Security Act do presidente americano Roosevelt, na década de 30, estão consolidados. Ocuparam a agenda do país e nenhuma força teve coragem de condená-los.
A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: Qual o balanço do governo e o que Lula deixa para o país?
André Singer: O que marcou politicamente esses oito anos foi a ocorrência de um realinhamento eleitoral. Realinhamento é um fenômeno que, para ser assim considerado, precisa ser de longo prazo. Se o eleitorado fica oscilando de eleição para eleição, ocorre o desalinhamento. Nós estamos entrando num novo realinhamento que deverá durar um período longo, caracterizado pela troca de bases sociais, com a perda da classe média, que era característica das candidaturas de Lula e do PT até 2002. Essa base migrou para o PSDB, que já tinha uma parcela desse setor, mas que cresceu e se consolidou a partir do afastamento em relação ao PT. Foi substituída por uma adesão maciça de eleitores de baixíssima renda, o que começou a acontecer em 2002 e cresceu em 2006.
Valor: Existe paralelo desse fenômeno na história?
Singer: Isso é muito parecido com o que ocorreu no período Roosevelt: ele ganhou as eleições em 1932 e tomou uma série de decisões políticas de combate à crise, baseadas no combate à pobreza e à desigualdade americana. O Partido Democrata incorporou uma base de trabalhadores que não tinha. Cada período de realinhamento tem uma agenda própria - no caso de Roosevelt e também nos dois mandatos do governo Lula, é a agenda que combina combate à pobreza e distribuição de renda. As duas coisas não são necessariamente a mesma: o combate à pobreza pode se dar sem uma diminuição da desigualdade.
Realinhamento eleitoral do PT mudou agenda e, mesmo se a oposição ganhasse, teria de manter os programas sociais
Valor: É efetiva a transferência com redução da desigualdade?
Singer: São duas coisas que podem estar relacionadas, mas não necessariamente. Pode ter uma melhora dos cidadãos de baixa renda, mas acompanhada por uma melhora relativamente maior dos cidadãos de alta renda. A desigualdade, assim, pode crescer. Os números do Ipea mostram que houve uma redução da pobreza da seguinte ordem: 50% da população estava abaixo da linha de pobreza quando terminou o governo Fernando Henrique, e isso caiu para cerca de um terço. São esses milhões de pessoas que saíram da classe D e foram para a classe C. Do lado do combate à pobreza, esse foi um processo acelerado.
Valor: Por que era muita pobreza ou porque a política foi eficiente?
Singer: As duas coisas. O Brasil é um país que tinha uma pobreza enorme e as políticas são efetivas porque produzem uma sinergia. Começaram com um programa de transferência de renda, que é o Bolsa Família, voltado para os cidadãos de baixíssima renda. O programa multiplicou por treze o valor da transferência no governo anterior e começou a movimentar setores da sociedade e regiões que antes estavam estagnados. Por isso é tão forte o efeito do Bolsa Família no interior do Nordeste, que vai se somar, a partir de 2005, ao aumento do salário mínimo. A recuperação do mínimo começa relativamente lenta, mas tem uma aceleração forte no segundo mandato, chegando a um aumento real de 30%. Nos dois mandatos, o aumento foi de 50%.
Valor: Salário mínimo e Bolsa Família são complementares?
Singer: A sinergia do Bolsa Família com o mínimo é enorme. Nas pequenas cidades do Nordeste, as pessoas vivem do dinheiro do Bolsa Família e das aposentadorias. Como o aumento do mínimo impacta as aposentadorias, houve um aumento da renda real, que começou a ativar a economia dessas regiões. Existe um terceiro ponto, a expansão do crédito, sobretudo para as camadas de baixa renda, e aí tem muita importância o crédito consignado, que se associa ao salário mínimo e ao Bolsa Família. Além disso, existe o Pronaf, programa de crédito para agricultura familiar. Houve uma política importante de bancarização: as pessoas que nunca tiveram uma conta bancária passaram a ter, e com isso, também acesso ao crédito.
Valor: Como se garante a continuidade desse processo?
Singer: Esse conjunto de políticas explica o realinhamento e ao mesmo tempo produz a sua continuidade, porque faz com que a agenda se desloque, criando constrangimento para todas as forças políticas. No primeiro turno, não só a candidata do governo propunha a continuidade, mas também Serra se sentiu obrigado a fazer propostas específicas - aumento expressivo do salário mínimo, décimo terceiro do Bolsa Família e aumento real dos aposentados. A candidata Marina dizia sempre que as políticas sociais não podiam ser mexidas. Isso lembra expressão que foi usada por dois cientistas políticos americanos, Wendy Hunter e Timothy Power, num artigo que escreveram sobre as eleições de 2006. Disseram que o Bolsa Família poderia se tornar, no caso brasileiro, o que nos EUA se chama de "third track", o terceiro trilho, comparável ao Social Security Act do Roosevelt. A linha do trem tem os dois trilhos pelos quais caminham os vagões, mas do lado tem uma estrutura que parece um terceiro trilho e de lá vem a energia elétrica. É uma estrutura que não pode ser mexida, sob risco de morte política.
Valor: Então, esse é um dado consolidado?
Singer: Parece que sim. Isso é típico do realinhamento. Ninguém vai mexer com o Social Securyt Act. O que eles (os EUA) não fizeram, como o sistema público de saúde, estão com uma dificuldade enorme de fazer agora. Nós estamos vivendo um período de grande mudança estrutural.
Valor: Mas ocorre também um hiato de representação política.
Singer: Eu acho que o sistema partidário brasileiro está se consolidando com as limitações que os sistemas partidários têm nas democracias em geral. Os partidos já não são mais como antes. Em todas as democracias, estão se tornando puramente eleitorais.
Valor: Isso é bom?
Singer: Faz parte da democracia em geral, porque há um esvaziamento dos mecanismos de representação. É muito ruim, mas não é um problema só brasileiro. Do ponto de vista comparado, estamos bem em relação aos sistemas políticos dos outros Bric: temos um sistema democrático que conseguiu se firmar, e não só ponto de vista das regras formais. Nesse quadro, tanto o PT como o PSDB têm se mostrado partidos representativos.
Valor: Com esse esvaziamento, os conflitos não se exacerbam?
Singer: Há hoje no país uma polarização social da classe média tradicional, que está reagindo à diminuição da desigualdade, o que é uma grande surpresa. Não é que a vida dessas pessoas está piorando, mas a das outras está melhorando e a sua está ficando igual, o que torna a classe média tradicional relativamente menos privilegiada. Há no Brasil um sentido anti-igualitário que talvez estivesse adormecido. Há autores que tendem a dizer que, na sociedade brasileira, existem setores que são muito conservadores, no sentido de naturalizar uma fratura social. Agora, isso está se expressando numa vontade ativa de que essa fratura permaneça. Por outro lado, há de fato uma certa animosidade política, que tem por trás uma polarização social real, que deve ser compreendida. Isso não significa radicalização política. Há todo um esforço do projeto político do governo de não produzir nenhuma radicalização. Isso tem relação com a ideologia do subproletariado, que quer mudanças, mas sem radicalização. Quanto à animosidade, isso é da própria campanha eleitoral, desde que evidentemente isso não se converta em atos de violência. Mas enquanto se tem uma certa expressão verbal mais alta, eu até acho que não é necessariamente negativo. É claro que não estou, com isso, fazendo elogio da baixaria.
Valor: E a representação parlamentar, isso é uma coisa que está resolvida nas novas instituições?
Singer: Acho que não. Estamos com um problema em relação à nossa representação parlamentar. Historicamente há uma avaliação negativa por parte do eleitorado e eu tenho a impressão de que o parlamento vem gradativamente deixando de ser o lugar dos grandes debates nacionais. Acho que em parte tem a ver com as dificuldades gerais da democracia, mas existem aspectos particularmente brasileiros: há uma certa desvalorização da atividade parlamentar e isso tem uma tradição histórica no Brasil e é muito ruim. É muito importante para a democracia que os três poderes, e a imprensa, pensada como um quarto poder, tenham pleno funcionamento. Quanto mais os poderes funcionam de maneira plena, mais a qualidade de democracia se eleva.
Valor: No final das contas, nessas últimas décadas, o Legislativo é o único cenário de disputa política visível. Houve esvaziamento das demais forças.
Singer: Eu acho que vivemos uma década excepcional entre 1978 e 1988. Aquilo não é e talvez nunca possa ser o normal, porque foi uma década de mobilização social como nunca houve. Um colega comentou isso comigo na própria Anpocs: a quantidade de greves naquele período não tem comparação com nenhum lugar do mundo. Naqueles dez anos, nós fizemos uma revolução democrática silenciosa. Foi um período excepcional. Quando se compara com posteriores e até anteriores a ele, se conclui que foi uma coisa de grandes proporções, que se consubstanciou numa Constituição muito avançada. Desde esse ponto de vista, acho que nós temos áreas de debate e disputa política importantes ainda. Primeiro, a própria disputa presidencial. E não estou tão convencido de que os sindicatos tenham perdido inteiramente o seu papel. Houve um forte descenso nos anos 1980, com um refluxo causado em boa medida pelo desemprego em massa - em todos os países, quando isso acontece, se quebram as pernas do movimento sindical -, e acho que temos agora um novo fortalecimento dos sindicatos. Não estamos vivendo um período como aquele que começou em 1978, mas eu diria que o movimento sindical lentamente está readquirindo a sua importância no debate político e os próprios movimentos sociais estão ativos.
Valor: Você compartilha da ideia de que o governo petista cooptou movimentos e sindicatos?
Singer: Há, claro, uma participação de dirigentes sindicais no aparelho de Estado - isso é um dado, e deve haver também participação de antigos militantes dos movimentos sociais. Mas cooptação significaria que esses movimentos perderam capacidade de representar as demandas de suas bases e agora eles não responderiam mais a elas, mas ao aparelho de Estado. Isso eu tenho dúvida. Eu li o programa que a CUT elaborou para a campanha da Dilma, e é coerente com os pontos de vista históricos da classe trabalhadora. Eu não chamaria de cooptado um programa que defende o imposto sobre grandes fortunas, o controle sobre capitais, a redução dos juros , a ideia de que o BC deve estar alinhado com metas de distribuição de renda e crescimento, além da redução da jornada para 40 horas semanais. (MIN)
__________________________Reportagem porRuy Baron/Valor
Fonte: Valor Econômico online, 01/11/2010
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