quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Netcultura



A net-cultura sempre tem sido uma comunidade intelectual e tecnológica variegada e com frequência rixenta em seu interior. Fora das nossas fronteiras nacionais podiam enumerar-se entre os seus expoentes o místico e holístico Kewin Kelly e o visionário artista Lew Manovich, o jurista libertário Yochai Benkler e o inspirador dos common criativos Lawrence Lessig, o guru do free software Richard Stalmman e o entusiasta agit-prop da wikinomiks, Don Tapscott.

A reportagem é de Benedeto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 17-10-2010. A tradução é de Benno Dischinger.

Mas, se todos estes estudiosos e tecnólogos podem ser considerados, além das diferenças evidentes nas teses que desenvolveram com o tempo, as colunas mestras da visão dominante na Internet e na assim dita Web 2.0, não podem ser removidas as contribuições de quem procurou indagar criticamente a “revolução do silício” a partir da verificação das teses marxianas sobre o capitalismo contemporâneo. Neste caso, o acento tem sido posto nas características do “trabalho cognitivo”, individuando na Rede um laboratório no qual se manifestavam as características dominantes da relação entre capital e trabalho vivo na contemporaneidade.
A centralidade do conhecimento, das relações sociais, da capacidade de desenvolver uma cooperação produtiva centrada na inovação do produto e dos processos laborais era associada a uma leitura parasitária da função empresarial. A inovação e o poder da cooperação produtiva vinham sendo “capturadas” somente quando já se haviam manifestado através de articulados “dispositivos normativos” como as leis sobre as patentes e os copyrights, através dos quais a cooperação produtiva vinha sendo coercitivamente reduzida à propriedade intelectual das empresas. Ao mesmo tempo, a estratificação do trabalho vivo, a divisão entre perms e temps – respectivamente os trabalhadores em tempo indeterminado e em tempo determinado -, o deslocamento para a Índia, a China e a Rússia legitimavam a expressão de “escravos da rede” quando se falava de produção high-tech.

Sufocados pelo bom senso

Nicholas Carr - Imagem da Internet
E, no entanto, é indubitável que, não obstante as conflitantes leituras apologéticas ou conflitivas da Rede, entre os anos noventa e a primeira década deste novo milênio a Internet e a assim chamada Web 2.0 tem sido interpretadas como a realidade na qual o progresso tecnológico teria conduzido magicamente ao sempre desejado “reino da liberdade”. Neste reino cada um podia exprimir do melhor modo sua criatividade, porque posto ao reparo das sufocantes hierarquias das organizações produtivas típicas do longo século vinte. Há alguns anos, todavia, precisamente dentro da net-cultura emergiram posições decididamente menos indulgentes com o mundo conectado da Rede. Por exemplo, faz alguns anos que o estudioso estadunidense Nicholas Carr torna pública sua visão crítica sobre o mundo digital. A comunicação on-line e a presença das empresas na Internet põem em risco aquele bem inestimável que é a ‘privacy’, argumenta Carr no volume “O lado obscuro da rede” (Etas).
Enquanto isso, faz soar o bumbo do alarme social quando sustenta que a Internet provoca uma espécie de regressão cognitiva de massa, porque é no computador que vem sendo sempre mais delegada a tarefa de fazer uma série de operações que são prerrogativa somente dos humanos – fazer cálculos, confrontar materiais, fazer pesquisas (a este propósito seria discutido a fundo seu recente ensaio “The Shallows: What Internet is doing to Our Brain” [Os frívolos (superficiais): o que a Internet está fazendo com nossos cérebros] ).

John Freeman - Imagem da Internet
Ao mesmo tempo, conhecidos críticos literários, como John Freeman, não tem muitas delongas em denunciar a “Tirania do e-mail” (Código edições), entendendo com isso os efeitos desastrosos sobre as relações sociais dos indivíduos provocados por aquela duradora conexão à rede de homens e mulheres que, além do computador, tem como meio de comunicação os telefones celulares de nova geração. As posições de Carr tem tido muito eco nos Estados Unidos, provocando uma espécie de suspiro libertador por parte da Inteligência liberal que vê com sempre mais fastio uma realidade invadida pela comunicação on-line. Assim, os símbolos da Web 2.0 – Facebook, YouTube, Twitter, Wikipédia – são de tempos em tempos definidos como os “vetores” de uma barbarização generalizada que já atingiu, por exemplo, as jovens gerações e que agora também está colonizando a vida em sociedade dos adultos.

A onda neo-aristocrática

Haveria muito a discutir sobre a incapacidade do pensamento liberal de compreender a realidade contemporânea a partir do reflexo neo-aristocrático que o caracteriza. Este reflexo frequentemente o conduz a teorizar a despedida daquilo que acontece na sociedade em defesa de um estilo de vida metropolitano marcado pelo vezo que os liberais são os únicos depositários de um saber humanístico capaz de tornar-nos imunes do contágio dos processos de massificação do capitalismo global. Seria, no entanto, um erro relegar esta deriva elitista do pensamento liberal à Rede. Atualmente basta folhear as páginas culturais dos cotidianos anglo-saxões, alemães, franceses e italianos para deparar com escritores mais ou menos jovens que professam sua distância do neoliberalismo e, ao mesmo tempo, seu desprezo em relação a quanto acontece na sociedade, elevando seu bom senso ao máximo do pensamento crítico. A crítica à rede, como também à sociedade do espetáculo se traduz, pois, numa crítica da sociedade de massa e da tecnologia reduzida a um sistema auto-suficiente e “totalitário’. Uma atitude aristocrática e blasé, em todo caso funcional e complementar àquela ordem neo-feudal da qual desejaria tomar distância.

Jaron Lanier - Imagem da Internet
Nesta direção vai também o ensaio de Jaron Lanier, “Tu non sei um gadget” [Tu não és uma máquina] (Mondadori), a quem vai inscrito o mérito de não andar demasiado às voltas com respeito ao estado da arte da Internet e da Web 2.0. Para o pioneiro da realidade virtual, a Rede é o reino da homologação e de um “totalitarismo cibernético”, onde a péssima qualidade do software usado se conjuga muitíssimo bem com uma multidão de balbuciantes navegadores que inundam a rede de gracinhas e tolices. Além disso, após a crítica maciça aos intermediários do saber em nome do compartilhamento, Lanier considera necessário restaurar a autoridade perdida dos “sábios” sobre a “multidão” e, ao mesmo tempo, resgatar do lamaçal as mágicas virtudes da ética do trabalho (assalariado) e da função empresarial “pura”.
O autor de “Tu não és uma máquina” é uma figura anômala no panorama digital. Em seu início como pesquisador sobre as realidades virtuais ele considerava a fronteira digital como uma terra inexplorada a colonizar, afim de que homens e mulheres tivessem ao alcance de um click um instrumento para potenciar as faculdades do ser humano. Alguns lustres após se propõe, com inalterada presunção, representar uma espécie de distrofia produzida pela invasividade da tecnologia, esta última entendida como um sistema auto-referencial e auto-replicante que oprime os indivíduos e as coletividades. Já nos anos sessenta, figuras controversas da cultura humanista como o filósofo francês Jacques Ellul haviam disparado dardos contra as tecnologias eletrônicas, equiparando-as a um sistema autoritário que oprime a sociedade.
Uma atitude hostil ao digital que também contaminou muitos movimentos contra-culturais presentes na Rede, os quais estão teorizando, precisamente através da Internet e dos social network, a necessidade de abandonar o mundo digital para melhor enfrentar o apocalipse social próximo vindouro.
O que gera perplexidade nesta renovada onda contra a rede não é só a propensão elitista e neo-aristocrática que a caracteriza, quanto a indisposição contra quem, ao invés, considera que a Web 2.0 e a Rede sejam antes como um campo de possibilidades de libertação, do que um sistema de máquinas que quereria encerrar a cooperação social no interior de um regime fundado sobre o trabalho assalariado. Em suma, a manobra a ser feita é sempre aquela de estar dentro e contra o regime de acumulação capitalista. Por isso, é preciso despedir-se daquele senso comum que está na base das teses expressas por muitos críticos da Rede que inundam as páginas dos cotidianos e as prateleiras das livrarias propondo infinitas e sedutoras conspirações a favor da ordem constituída.
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Fonte: IHU online, 03/11/2010

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