domingo, 1 de maio de 2011

42 bico largo

O bendito dia em que um professor da Unicamp
emprestou pisantes secos a
um ensopado João Paulo II

Se fosse noite, Etienne Samain traria um vinho tinto e quem sabe até acendesse a lareira com as toras que abrigou no quintal, ao lado do carro popular empoeirado com cara de "vamos lá, Etienne, me leve pra passear". Mas nessa manhã úmida e cinza que faz Campinas parecer a sua Bélgica natal, Etienne vem da cozinha com uma boa garrafa de água fresca e duas taças. Ele enche os copos ao mesmo tempo que vai deixando seu corpo magro cair na cadeira. E então levanta o rosto comprido, de finos cabelos e elétricos olhos azuis:
- Bem, você já deve saber, mas é sempre bom reafirmar, pois não tenho nada a esconder: eu sou um ex-padre.
É também teólogo, antropólogo e professor da Unicamp desde 1984. Tem 72 anos. Um intelectual fino, pensador da cultura dos índios camaiurás, do Alto Xingu, e urubus-kaapor, do Maranhão, e hoje, com mais devoção, da teoria da imagem. Só que o assunto que me levou ali é outro, Etienne sabe disso. Daí talvez o tom de advertência que nem seu forte sotaque de erres arranhados conseguiu disfarçar naquela frase inicial. Vamos falar de 1964. Particularmente dos três ou quatro dias insólitos de outubro de 1964 em que Etienne conviveu com um arcebispo polonês chamado Karol Wojtyla. Ele mesmo: João Paulo II, o papa mais pop da história, morto em 2005, que será beatificado em Roma neste domingo, mas naqueles idos não tinha um sapato que prestasse - e acabou socorrido pelo jovem colega de batina.
Então com 26 anos, recém-ordenado, Etienne estudava no Colégio do Santo Espírito da universidade belga de Leuven, onde religiosos do mundo todo buscavam alimento para o intelecto e para a fé. Ocupava um quarto modesto de dez metros quadrados no primeiro andar de um prédio havia pouco recuperado do bombardeio que sofrera na 2ª Guerra. Tinha uma cama dobrável, uma escrivaninha, um armário, um telefone, uma pia. A janela sim era boa, grande, dava para o amplo e convidativo pátio de entrada. Na porta ao lado ficava o quarto de hóspedes, parede com parede, ambos os dormitórios dividindo uma diminuta antessala. No dia 26, uma segunda-feira, Wojtyla chegou e ali se instalou.
Etienne quer os detalhes mais precisos, por isso recorre ao diário que mantinha na época. Um caderno espiral de folhas quadriculadas recheado de caligrafia pequena e vacilante. Ele faz uma voz solene para ler o que anotou em francês, 45 anos atrás:
- Esta noite passei meia hora com monsenhor Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, que, voltando de Roma, parou alguns dias em Leuven. Ele se alojou ao lado do meu quarto e nos encontramos depois da oração da noite. Me contava as medidas políticas (adotadas pelo governo comunista polonês) contra a Igreja, por exemplo o envio de seminaristas para o Exército e a supressão de professores. Mas acrescentava: "A alegria nasce do sofrimento e é uma experiência extraordinária da graça de Deus o que a gente sente na Igreja da Polônia".
Wojtyla surpreendeu Etienne pela estatura. Primeiro a física, depois a religiosa. Aos 44 anos, o arcebispo mantinha a vigorosa postura do esportista que fora na juventude. Vestia-se como um vigário de aldeia, batina preta comum e chapéu redondo simples, sem nenhum vestígio do encarnado do arcebispado. Mas tinha os olhos de aço, se bem recorda Etienne:
- Me arrepio agora ao lembrar. Era pelos olhos que emanava espiritualidade dele, tão densa que quase dava para tocar nela. Um homem superior e poderoso, que se sabia assim, e contudo não exalava prepotência ou frescuras.
No dia seguinte, Etienne veria de perto o que apenas tentava entender derramando pensamentos no querido diário. Ao sair pela manhã, Wojtyla pediu que o avisasse caso uns amigos de Auderghem, cidade próxima, telefonassem. Eles telefonaram. Etienne deixou o prédio dos dormitórios e caminhou 40 metros até a capela da universidade para dar o recado. Encontrou Wojtyla sozinho, de joelhos no chão áspero, refazendo a via-crúcis. Depois do almoço, chovia como todo belga sabe que chove: uma chuvinha cerrada, intermitente, de dar mofo. Da janela embaçada de seu quarto Etienne viu o arcebispo cruzando o pátio debaixo do aguaceiro. Vinha todo molhado, incluindo o chapéu e a pesada capa sobre a batina, e os pés cobertos de lama. Etienne teve então uma demonstração de humildade maior do que todas as cerimônias de lava-pés juntas que João Paulo II viria a conduzir em seus quase 30 anos de papado. Está assim no diário:
- Por volta das 14 horas, ele bate na minha porta e diz: "Qual o tamanho dos seus sapatos? Tenho os meus ensopados. Será que você poderia me emprestar um par de sapatos?"
Bingo. Pés tamanho 42, como os de sua Eminência Reverendíssima. Bingo de novo. Etienne tinha dois pares sobressalentes, um novo e um usado. Wojtyla provou os dois e ficou com os novos. Eram pretos, de couro, bico largo e, ao contrário dos seus, que esguichavam água pelos lados quando ele pisava, vinham de um fabricante belga de primeira linha. Eles engraxaram, colocaram os cadarços e Wojtyla se foi, com os pés secos, enfim. Voltou à noite para devolver os calçados, mas Etienne insistiu que ficasse com eles. E ainda o presenteou com dois volumes mimeografados do semiclandestino O Pensamento Comunista, de Franz Gregoire, cônego e decano de Leuven. Agradecido, o arcebispo, que já tinha sido ator de teatro, comentou que gostara do modo como Etienne celebrara a Eucaristia, com gestos muito apropriados a um efetivo diálogo com os fiéis, e perguntou como poderia retribuir a gentileza. Etienne pediu que Wojtyla o abençoasse. Foi atendido.
Daí em diante as lembranças que Etienne guarda de sua vida religiosa se turvam um pouco. E ele não faz questão de mexer nisso. É coisa resolvida. Pendurou a batina em 1974 e nunca mais manteve sapatos sobressalentes - usa um par até o osso e aí compra um novo, possivelmente fabricado na China. Também não se valeu mais do diário. Mas entende que ter escrito para si mesmo impediu que ficasse maluco. Foram 18 cadernos ao longo dos 12 anos de sacerdócio:
- Relendo-os ontem eu percebi que já estava tudo lá. Todo o meu desespero, o meu sofrimento. É dramático, dramático. Dizer que a Igreja me irrita seria um pouco forte. Ela não representa mais nada pra mim. Absolutamente nada, embora eu não tenha abandonado o sagrado. Só não preciso mais de intermediários, de religião nenhuma. Na carta de 11 páginas que escrevi ao papa Paulo VI pedindo desligamento expus meus questionamentos, todos relacionados à fé, à sexualidade e ao engajamento humano. Por sorte o chefe da época era o Paulo VI, mais liberal, porque se fosse o João Paulo II, apesar dos meus sapatos, o pedido seria engavetado como tantos outros e eu talvez me transformasse num bispo infeliz.
"A Igreja hoje é uma fogueira se apagando.
Há cinza demais cobrindo
uma única brasa enfraquecida.
 Beatificar João Paulo II apenas
 seis anos depois de sua morte
é soprar desesperadamente
essa brasa na esperança de que
 a fogueira volte a arder."
Sandálias nordestinas. Em vez disso, Etienne casou com uma enfermeira belga que conheceu no Brasil e adotou dois filhos, que batizou com nomes indígenas: Tiwani, de 31 anos, é piloto de avião; Maíra, de 25, recepcionista do transatlântico Queen Elizabeth. Godelieve, a querida companheira de 35 anos, foi levada pelo câncer em 2009. Por duas vezes ele ensaiou contato com Wojtyla, a quem jamais deixou de considerar um amigo, apesar de criticar seu conservadorismo. Em 1983, quando da primeira visita do papa João Paulo II ao Brasil, fez chegar a ele um par de sandálias nordestinas, de couro e solas de borracha. Os portadores foram seus amigos Dom Hélder Câmara e Dom Antônio Fragoso, dois expoentes nacionais na defesa dos Direitos Humanos durante a ditadura militar. Nunca soube se Wojtyla as recebeu. Em 2003, no aniversário dos 25 anos do pontificado, lhe escreveu uma carta curta. Encurvado e cada vez mais doente, o amigo em nada lembrava o homenzarrão dos olhos de aço de Leuven. Na missiva, Etienne despedia-se assim: "Temos um e outro viajado, aliás, muito mais do que Ulisses. Chega, assim, a hora de nossos sapatos descansarem um pouco e de tomarmos o tempo, todo o tempo de olhá-los". Nenhuma resposta chegou.
Etienne tem os olhos baixos de novo. Eles miram o cartão de visita afrancesado ("Charles Wojtyla, Archevêque de Cracovie") que recebeu em 1964 e desde então guarda na sua caixinha de bens mais preciosos - fotografias de família e amarelados bilhetes de aniversário assinados por "papai" e "mamãe". Cabeça longe, provavelmente em Leuven, dedos acarinhando o cartão, ele vai pesando alto:
- Com o passar dos anos, a história dos meus sapatos usados pelo papa se tornou uma anedota familiar pela qual tenho muito carinho, sabe? Afinal, o que seria se eu não tivesse sapatos extras naquele dia chuvoso? Ou se meu número fosse 38? Às vezes, rio sozinho pensando que, não fosse por mim, Karol Wojtyla teria apanhado um resfriado, com potencial de virar pneumonia e... puff. Nada de papa, nada de beato, nada de santo. Porque o Vaticano vai achar mais um milagre para transformá-lo em santo, você pode ter certeza. A Igreja hoje é uma fogueira se apagando. Há cinza demais cobrindo uma única brasa enfraquecida. Beatificar João Paulo II apenas seis anos depois de sua morte é soprar desesperadamente essa brasa na esperança de que a fogueira volte a arder.
O papa da vez, com seus pisantes vermelhos da Prada e sua Igreja para poucos e bons católicos, obviamente tem culpa nesse cartório, na opinião de Etienne. Mas ele não gosta de falar de Joseph Ratzinger, personagem que o aborrece. Mesmo assim, olhando a rua molhada através das antigas janelas de seu escritório, lanço uma última provocação:
- E se eu te disser que o papa Bento XVI está ali no portão, todo molhado, querendo saber que número você calça?
- Bem, acho que ele vai se resfriar.
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Reportagem por Christian Carvalho Cruz/Campinas-SP - O Estado de S.Paulo
Fonte: Estadão online, 01/05/2011

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