sábado, 15 de novembro de 2008

As variedades do ATEÍSMO moderno


Agnaldo Cuoco Portugal*

As livrarias brasileiras vêm exibindo um número significativo de títulos voltados para o tema da religião e da crença em Deus. O Tratado de ateologia de Michel Onfray, Deus não é grande de Christopher Hitchens e, principalmente Deus – um delírio de Richard Dawkins entraram nas listas dos livros mais vendidos por um bom período, e não só no Brasil. Em comum, a temática religiosa vista de um posicionamento claro em relação a ela, o de negação e rejeição. Trata-se de um fenômeno social e um movimento intelectual específico, que podemos chamar de "ateísmo moderno".

O adjetivo "moderno" indica não apenas o fato de que é um conjunto de idéias do tempo atual, mas também que, embora tenha raízes em teses desenvolvidas a partir do século 18 principalmente, caracteriza-se por ser algo senão inédito, pelo menos muito raro na história do pensamento ocidental. Assim, antes do século 18, o ateísmo era principalmente a negação de certa concepção de Deus ou de determinada prática religiosa, em nome de outra. Nesse sentido, por exemplo, os cristãos eram acusados de ateísmo pelas autoridades romanas que os perseguiam. Portanto, antes do ateísmo moderno, quando alguém se declarava ateu, a pergunta natural, salvo raríssimas exceções, era: "Com relação a que concepção de Deus?".

O materialismo e anticlericalismo de vários ideólogos da Revolução Francesa, as críticas filosóficas à religião no século 19 e início do século 20, e as suspeitas de irracionalidade quanto à crença religiosa e sua alegada inconsistência com o nascente método científico foram aos poucos configurando um novo tipo de ateísmo. A partir daí, formou-se um ateísmo que não se voltava apenas contra uma concepção de Deus ou uma prática religiosa, mas contra todas as crenças religiosas e qualquer noção de divindade.

Com base nesses diferentes fatores, o ateísmo moderno assumiu duas variedades fundamentais, relativamente bem representadas nos textos de que falamos acima. De um lado, temos a crítica à religião do ponto de vista antropológico, ético e político. É nessa linha que se situa a célebre crítica de Marx de que a religião seria uma forma de ópio, que impede a percepção de que somos reduzidos a mercadoria e objeto na engrenagem econômica capitalista. Ou mesmo a tese de Freud de que as crenças religiosas resultariam do desejo humano de superar o medo da natureza e da necessidade de regular nossos instintos anti-sociais por meio da autoridade de um "Pai Celeste", e que, com o advento da ciência, da tecnologia e de uma melhor organização da sociedade em bases racionais, a religião teria seus dias contados.

A outra variedade do ateísmo moderno não se atém tanto aos alegados problemas que a religião traz para o exercício e realização da liberdade humana, mas se dedica a criticar as crenças religiosas com base numa concepção de racionalidade científica. O problema da religião, segundo essa variedade de ateísmo, é a dificuldade dela se manter num tempo dominado pelo conhecimento científico, pois não se baseia nem no raciocínio logicamente coerente nem na experiência rigorosamente controlada, como se tem na ciência moderna.

Ainda que o ateísmo seja pouco freqüente em relação à população em geral, não se pode negar que ele tem uma significativa aceitação entre aqueles com mais acesso à informação, ou seja, a elite dita "formadora de opinião". E essa é uma maneira de explicar o sucesso editorial dos livros de que falamos no início.

Mas, como qualquer tese filosófica, o ateísmo moderno não é imune a críticas. Não são poucos os autores que argumentam que, não só a religião é compatível com a realização humana e com a conduta eticamente correta, mas que, em vários sentidos, é necessária a elas. E há ainda os que sustentam que negar racionalidade às crenças religiosas e fazê-la inconciliável com a ciência moderna só é possível dentro de uma concepção inaceitavelmente estreita de ciência ou de racionalidade. Ou mesmo a acusação de que o ateísmo moderno, longe de ser só uma rejeição da religião em geral, é uma forma disfarçada de fundamentalismo cientificista. Em outras palavras, o ateísmo não teria o monopólio da inteligência e do empenho pela liberdade e realização humanas.

Assim, muito para além do fenômeno de mídia, o ateísmo moderno é objeto de um debate de grande potencial enriquecedor na filosofia da religião contemporânea, não só para os que o adotam, mas para os que discordam dele.
(*Professor do Departamento de Filososfia da Universidade de Brasília e Doutor em Filososofia da Religião)
http://ee.jb.com.br/reader/clipatexto.asp?pg=jornaldobrasil_117587/98454# 15/11/2008

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