quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O INDIANA JONES DA LITERATURA

Tahir Shar conta ao `Jornal do Brasil' por que decidiu morar numa favela no Marrocos

Reportagem é de Monique Cardoso

A figura não lembra a de um aventureiro. Nem a do arqueólogo-herói Indiana Jones. Mas o escritor inglês Tahir Shar, casado, pai de duas filhas pequenas, é, definitivamente um explorador. Nascido em Londres numa família de afegãos, trabalhou em algumas expedições no Paquistão, na América do Sul e África. A experiência o levou a contar histórias colhidas nos países que visitou. Apesar de ter se tornado reconhecido autor de livros de viagem, suas publicações nada têm a ver com turismo.
Com linguagem fluida e títulos típicos de romances de aventura populares, o escritor empresta a própria vivência aos leitores. Para escrever A casa do Califa ­ Um ano em Casablanca, sua penúltima obra e primeira a ser lançada no Brasil ­ hoje, na Travessa do Leblon ­ resolveu mudar, de mala e cuia, com a mulher e duas filhas para um casarão em ruínas cravado no miolo de uma favela na famosa cidade do Marrocos. ­

- Gosto de experimentar e de mostrar que sou uma pessoa interessada em ouvir. Não é preciso ser alguém muito especial para ser um explorador ­ conclui Shar, no Brasil para o lançamento da obra em diversas capitais. ­ Qualquer pessoa pode explorar um novo lugar e, mais importante ainda, ambientes que pensa conhecer bem. É tudo uma questão de frescor no olhar.
Aos 42 anos, comemorados no sábado com uma cervejinha no Bar Mineiro, em Santa Teresa, Shar escreveu o primeiro de seus 10 livros de viagem aos 23. As obras são ambientadas em países como Etiópia (Em busca das minas do rei Salomão) e Peru (A casa do Rei Tiger). As aventuras também renderam documentários para canais como National Geographic. Shar conta que já participou de toda sorte de rituais e até já foi preso por 16 dias no Paquistão. Esta, porém, não foi sua aventura mais emocionante. ­

- Uma vez no Congo, não conseguia carona e caminhei por horas ao longo de uma estrada. Estava ficando desesperado, pois escurecia. Até que o inesperado aconteceu. Um rapaz saiu do meio da floresta e me conduziu a uma casa, onde várias pessoas me esperavam. Eles tinham certeza de que eu pertencia a uma família que estava desaparecida há anos. Dormi e comi como um rei. No dia seguinte, constatado o engano, fui embora. Na partida, me ofereceram um bebê. Queriam que o levasse para a Europa para que sobrevivesse. Aquilo foi muito tocante. Nunca esqueci. Disse-lhes apenas que o modo de vida deles era muito mais rico do que a vida que levava em Londres.
Shar costuma dizer que nasceu com um pé no Ocidente e outro no Oriente. As raízes e as experiências em viagens fizeram com que compreendesse bem ambos os tipos de cultura e não se limitasse a narrar os estranhamentos provocados por um lugar exótico, completamente novo. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, passou a achar que havia uma necessidade urgente de se explicar esses dois lados um para o outro. Tomou isso como uma missão. ­

- É uma espécie de dever. A mídia perpetua estereótipos enganadores sobre a cultura oriental. Uma das principais razões para escrever esse livro era mostrar que Marrocos não é um fanático país árabe, que é uma cultura tolerante, uma encruzilhada entre a África e a Europa ao longo dos séculos.
Ao mesmo tempo, Shar acha que ambas as tradições têm muito a ensinar uma para a outra. E que as diferenças de ponto de vista atrapalham os processos de paz.

- ­ A tradição oriental é muito antiga e sábia. Às vezes sinto que o Ocidente, em especial os EUA, age de maneira infantil. Parece uma criança mimada que pensa que sabe tudo, mas sempre precisa de um novo estímulo. Já nos países orientais aprende-se desde cedo a apreciar o que é antigo, que já foi testado e validado através dos séculos.
Mesmo fazendo muitas viagens para escrever, Shar estava cansado dos dias cinzentos, do ar poluído, e do estresse de uma grande metrópole. A mulher estava grávida e tinha um contrato para escrever mais um livro, dessa vez sobre o Marrocos. A idéia era narrar a vida em um lugar completamente diferente. Amigos e parentes ficaram apreensivos. A mulher, temerosa de não conseguir oferecer uma infância segura às filhas. Uma opção seria viver em Marrakesh, destino mais popular entre os europeus, cidade com mais estrutura: ­

- Milhares de europeus têm comprado casas tradicionais lá. E Casablanca é tida como suja, desorganizada, poluída. Mas a cidade tem enormes vantagens. A principal delas é que não há turistas. Por causa disso, a sociedade não foi destruída pelo turismo.
Foi então que, há cinco anos, encontrou uma mansão de pura arquitetura árabe em ruínas, em meio a uma favela, com esgoto a céu aberto. Resolveu reconstruir a casa e, a cada tijolo que acrescentava nas paredes, construía uma vida nova. O livro foi publicado em 2006 e ficou semanas entre os melhores da revista inglesa Time. ­

- Dar-Kalifa me ensinou o que há de mais importante na vida, me acalmou, me fez mais humilde. Mudei muito nesse processo. A casa nunca está vazia, estamos sempre cercados de amigos. Aprendi muito, sobretudo com os empregados que já moravam na casa. Estou tocado pela bondade deles. Eles vivem na favela, no meio do lixo. Mostram que você não precisa ser rico para ser generoso.
Na mansão Shar montou uma mítica biblioteca, descrita no livro, com milhares de volumes. É onde trabalha. Mas quando está quente, simplesmente pega o laptop e muda o escritório para o quintal. ­

- Talvez a coisa mais fantástica da arquitetura árabe é que as casas são construídas de dentro para fora. Os espaços internos têm fontes e pátios com o som de pássaros cantando. É o paraíso ­ descreve.
Experiência mágica A felicidade de Shar e de sua mulher, porém, está no que a experiência pode trazer para a vida das filhas, Ariane, de 8 anos, e Timur, de 5. ­
Elas estão crescendo em um país amistoso, interessante, num ambiente com espaço, um verdadeiro oásis. A casa é grande e por isso têm espaço para correr ao redor. Elas adoram Dar-Kalifa, mas imagino que levará anos para compreenderem como é mágico viver o que estão vivendo.
A casa do Califa é, sem dúvida, seu livro mais pessoal. Depois dele, Shar voltou às narrativas fantásticas e lançou In arabian nights. Está na ponta de uma dinastia de contadores de histórias. O pai é autor de inúmeros títulos e sua casa sempre viveu cheia de escritores, entre os quais Doris Lessing, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura no ano passado, aos 87 anos: ­

- Ela ensinou-me a usar minha energia para escrever. E ainda produz, tem quase 90 anos e não usa computador. Amo a maneira como encara a profissão, de forma simples. Para ela, publicar um livro não é visto como uma grande coisa.
O estilo, porém, não foi exatamente uma escolha planejada. ­

- O que posso dizer é que sempre me deixei levar por histórias e idéias. Só faço projetos que me despertam interesses grandes. A paixão do escritor pelo que está contando é o que assegura um bom livro para se ler até ao fim. Apesar de ter se tornado autor de livros de viagem, eles nada têm a ver com turismo.
A casa do Califa - Tahir Shar. Roça Nova Editora. 360 páginas

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