Affonso Romano de Sant'Anna
1. Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras mundiais e
milhares de outras pequenas e
igualmente bestiais.
2. Aqui jaz um século onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita eram questões centrais.
3. Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas com sua homeopática atitude
— nux-vômica.
4. Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto armado,
canceroso, drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.
5. Aqui jaz um século
que se abismou com as estrelas nas telas
e que o suicídio de supernovas contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.
6.Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.
7.Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos e ideológicas safenas;
século tecnicolor que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.
8. Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.
9. Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passsado e o futuro
julgou-se eterno; s
éculo que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
— já vai tarde.
(...)
In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Poema integrante da série Aprendizagem de História
Nenhum comentário:
Postar um comentário