Filósofo lança livro de memórias em que reafirma a sua condição de comunista
Rodrigo de Almeida
O filósofo Leandro Konder se diz um sobrevivente: comunista do século 20, tenta, neste início de século 21, reinterpretar os juízos e propostas formulados por Karl Marx no século 19. O professor já se deu essa missão há alguns anos. Agora, lança um livro no qual não só revisa o comunismo como a própria condição de comunista. Chama-se Memórias de um intelectual comunista (Civilização Brasileira, 264 páginas, R$ 39) a obra que chega agora às livrarias.
Nela, Konder um dos mais respeitados intelectuais do país repassa histórias de sua vida: das lembranças de um garoto "programado para progredir" ao presente de saúde frágil (o Mal de Parkinson o obrigou a abandonar atividades políticas e acadêmicas). A leveza de estilo e a franqueza da autocrítica estão lá e se espelham na entrevista a seguir.
Estamos numa crise grave. O que comunistas têm a dizer?
Vejo de fora, pois quase não tenho atividade política por razões de saúde. Está faltando um embasamento teórico mais desenvolvido das forças da esquerda. Essa crise do capitalismo foi providencial, porque veio lembrar que o capitalismo também tem seus colapsos. Marx dizia: cada crise é diferente da anterior. Têm em comum o fato de serem crises. Temos de estar preparados para aproveitar essas crises. O que vamos fazer para superá-la, não sei. Cada crise tem seu ineditismo. Não estamos preparados para responder a ela. Nós, comunistas, nos espantamos tanto quanto a burguesia.
A começar do título, a questão do intelectual permeia todo o livro. O senhor escreve: "Posso reconhecer minha condição de intelectual sem cometer a tolice de me envaidecer com ela". Por que a preocupação?
A crítica só se aprofunda mesmo quando acompanhada da autocrítica. E a autocrítica não é aquela encenação dos partidos comunistas. Os comunistas faziam a autocrítica em nome de vantagens imediatas, e acho que a autocrítica é algo mais sério. Envolve tanto uma crítica das circunstâncias presentes como o exame crítico daquilo que você vem fazendo. E o que você vem fazendo não é plenamente satisfatório. Nunca é plenamente satisfatório.
Por quê?
Porque a realidade é sempre mais rica do que a representação que fazemos dela. Falamos em autocrítica, mas não fazemos. Portanto, estou tentando contribuir para uma tomada de consciência e o fortalecimento da nossa coragem de fazer autocrítica. Vale para comunistas, para não-comunistas e para mim.
Qual a autocrítica necessária?
Nós, marxistas, temos sido insuficientemente críticos e ousados na visão de como transformar os nossos conceitos. A realidade mudou muito. Temos de olhar para a frente, criarmos novos conceitos, definirmos novas propostas de percepção e de análise da realidade. Estamos muito atrasados nessa autocrítica.
Em que Marx ainda faz sentido neste início de século?
A luta de classes ainda é convincente. Está vigente. As formas da luta de classes mudaram muito, hoje são muito sofisticadas. No tempo de Marx não existiam partidos de massa nem o sufrágio universal. São duas conquistas que mudaram o mundo. Marx morreu antes, não poderia levar em conta isso. Mas o Marx que mais me interessa é o filósofo. Sua concepção do homem e da História é bastante original e está viva. Agora, a visão que ele tinha da realidade política não corresponde à realidade de hoje. É uma realidade diferente. É preciso ir adiante.
O que significa "ir adiante"?
Trabalhar com categorias e conceitos que nos permitam revitalizar a esquerda, que está muito confusa, dilacerada, fragmentada. Uma boa teoria ajudaria a superar isso.
Essa fragmentação é resultado de uma teoria falha do presente, ou a teoria ficou falha em função dessa fragmentação?
Eu não diria que é resultado de uma teoria falha. É resultado de uma política falha. A teoria ajudaria a superar isso, se ela fosse revitalizada, aprofundada, como Marx fez com a teoria no tempo dele. Era preciso radicalizar a teoria de Marx. Radicalizar no bom sentido. Ir até a raiz. E a raiz do homem é o próprio homem, como diz Marx. O Marx que mais me interessa é o filósofo. Sua concepção do homem e da História é bastante original e está viva.
Passa pelos atores políticos?
Quem faz política passa por dois momentos inevitáveis: o conflito e a negociação. Na parte da negociação entra o capítulo das alianças. Há de fazer alianças, mas alianças aceitáveis. Mas quando se fazem alianças amplas demais o povo desconfia. Você sacrifica sua própria identidade aos olhos da população. Não se pode ampliar sem limites. /
O senhor se refere ao governo do presidente Lula?
Acho o Lula um fenômeno que precisa ser estudado. Não me animaria a fazer a análise do fenômeno agora. Não sou cientista político.
O senhor descreve a sua decepção com o PT.
Gostei da idéia de um partido de esquerda radical, com identidade própria e ao mesmo tempo pós-leninista. Mas, com algumas alianças que fez, o PT virou um pouco o partido pós-tudo. Aí não dá.
O senhor escreve: ser comunista não é repetir, no século 21, propostas e juízos formulados por Marx no século 19. E o que significa ser comunista hoje?
Se conservo a concepção marxista do homem e da História, sou comunista. Posso discordar de Marx em vários pontos, mas o fundamental é que ele está me dando a concepção do homem e da história. A concepção do homem é ser o mesmo sujeito que se faz nas circunstâncias que lhe são impostas. Nasci no Brasil, sou um homem do século 20, sobrevivente no século 21, então essa concepção do homem me ajuda a não adotar esquemas explicativos baseados numa relação de causa e efeito. A concepção da história é a ação, a práxis, a atividade construtiva do homem. O homem transforma a realidade e se transforma.
O comunismo entrou muito cedo em sua vida. O senhor conta que, de início, lhe parecia uma estranha religião. Mas percebia os comunistas reunidos em torno do seu pai como "seres humanos iguais aos outros".
As crianças enxergam coisas que os adultos não vêem. Os comunistas eram, no fundo, muito parecidos com os não-comunistas. Então havia certa relatividade do conceito. Essa relatividade não era aceita pelo sistema, vivíamos numa sociedade que funcionava com um sistema intolerante. Os comunistas eram perseguidos, presos, espancados. Os partidos comunistas hoje existem legalmente e participam do jogo eleitoral. Ninguém vai gritar: "Prendam os comunistas!". Exceto os malucos da direita, que são bem mais malucos do que os da esquerda.
Isso criou um grande estigma. O anticomunista continua com vitalidade maior do que o comunista. A direita mantém um núcleo anticomunista que está vivo, que exerce uma influência enorme, muito maior do que a esquerda.
Isso criou um grande estigma. O anticomunista continua com vitalidade maior do que o comunista. A direita mantém um núcleo anticomunista que está vivo, que exerce uma influência enorme, muito maior do que a esquerda.
A que se deve essa diferença?
A direita é pragmática. Tem um órgão de grande sensibilidade, a carteira, que acusa a diminuição dos lucros. Quando acusa, toma medidas práticas para acabar com isso. E, em geral, culpa os comunistas.
No livro o senhor expõe a sua doença e descreve as limitações. Não teve receio da exposição?
A partir de um certo nível de participação na vida coletiva, temos de abrir mão de algumas situações nas quais tendemos a nos proteger demais da publicidade. Não podemos nos limitar a sermos políticos na esfera política e defender a intimidade na outra esfera. O intelectual tem de estar exposto, discutir seus males e os da sociedade. Eu me coloco diante dessa necessidade de expor esse mal, que é a doença. Gostei da idéia de um partido de esquerda radical, com identidade própria e ao mesmo tempo pós-leninista. Mas, com algumas alianças que fez, o PT virou um pouco o partido pós-tudo
Perfil
Nascido em Petrópolis em 1936, formou-se em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde em 1984 obteve o título de doutor em filosofia. Foi professor da Universidade Federal Fluminense e, desde 1985, leciona na PUC-RJ. Viveu na Alemanha e na França durante par te da ditadura. Tem mais de 20 livros publicados, incluindo dois romances. FOICE E MARTELO REVISTOS "Os comunistas faziam a autocrítica em nome de vantagens imediatas"
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