quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A cultura da dívida


Rose Marie Muraro
Escritora


Para a maioria dos economistas e o grande público em geral, esta crise imobiliária a que chamo “a mãe de todas as crises” começa em 2007, com o estouro da bolha imobiliária, e tem seu auge em setembro e outubro de 2008. Mas não é assim. Na verdade, o seu embrião se implanta em 1971, quando o presidente Nixon cortou o dólar do padrão ouro e substituiu-o pelo dólar como moeda de referência mundial. A partir daí as moedas (qualquer moeda) passam a não ter lastro nenhum a não ser a confiança daqueles que as usam. Pode-se imprimir, em qualquer país, tanta moeda quanto se queira.
Só que, nos países cujas moedas não são aceitas para negócios internacionais, a impressão desregrada de moeda dá origem à inflação, que pode se tornar muito aguda, como foi o ocaso da Argentina e Brasil nos anos 1990. A única moeda cuja impressão pode não causar inflação é o dólar, não só por que é moeda de referência, mas também porque os EUA são a maior economia do mundo. São eles os maiores importadores mundiais. Assim, quando o governo americano não fecha as suas contas mensais, os países exportadores, principalmente os do leste e sudeste asiático, correm para comprar bônus do Tesouro americano, para não perder mercado.
É assim que, em algumas décadas, o mundo é inundado de dólares. No começo dos anos 1980, quando o PIB mundial era de US$ 10 trilhões, havia rodando pelo mundo pouco mais do que esse montante em dólares. Hoje, em 2008, segundo a consultoria Mckinsey, o PIB mundial passa para US$ 48 trilhões e a quantidade de dólares rodando pelo mundo é de mais de US$ 167 trilhões.
Isso mudou a natureza do consumo mundial, dando uma sensação de riqueza ilusória, principalmente no mundo mais rico (EUA, União Européia e Japão). Inicia- se então, uma “cultura da dívida”. Desde os anos 1990 vi amigos americanos usarem até 12 cartões de crédito ao mesmo tempo. Outro amigo que ganhava cerca de US$ 2 mil mensais comprou um carrão (desses que usam muito combustível) por US$ 40 mil, pagando suaves prestações a perder de vista. Por seu lado, outro amigo meu que pagava tudo à vista não teve direito a um empréstimo de US$ 50 mil para completar o montante com o qual pagaria a casa onde mora hoje, porque não comprava o suficiente a prazo, isto é, porque não tinha dívida. Assim, a partir dos anos 1970 — 1980, inicia-se uma era de consumo compulsivo. Desde o final dos anos 1990, a poupança interna americana, passou a ser negativa: – 2%. Aquele consumo era feito com poupança externa. Isso vai se agravando no final do século 20 até o estouro da “bolha tecnológica”.
Um parêntese: nesses países eram oferecidos empréstimos cada vez mais vultosos a pessoas com cada vez menos garantias. Esse capital foi também se espalhando pelos países emergentes. É certo que, em parte, ele contribuiu para o desenvolvimento desses países, especialmente dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), que cresceram muito. O consumo de suas classes mais abastadas também cresceu exponencialmente. Instalava-se no mundo “a cultura da dívida”. Nos EUA, as pessoas, não tendo mais como pagar as dívidas, passaram a hipotecar suas casas no início do século 21. E as casas começaram a subir de preço. Uma casa que valia, por exemplo, US$ 200 mil passou a valer US$ 400 mil. Seu proprietário podia refinanciar a dívida de US$ 200 mil para US$ 400 mil. Pagava o que devia e ainda tinha US$ 200 mil para consumir mais.
Foi empurrada goela abaixo dos habitantes das periferias a possibilidade de comprarem a casa dos sonhos a prestações baixas e juros baixíssimos. Esses juros foram aumentando e eles já não podiam mais pagá-los. Então devolviam as casas aos bancos. Essas casas eram cerca de 10 milhões (segundo Nouriel Roubini). Assim começou a bolha que vemos hoje e que se achava ser a bolha dos subprimes, mas é o estouro de uma bolha muito mais antiga e profunda que é a bolha da “cultura da dívida”, que começou a estender-se pelo mundo inteiro. Só os consumidores americanos estão devendo cerca de US$ 14 trilhões; o governo, US$ 11 trilhões; os bancos, não se sabe. É o fim do sonho americano? Provavelmente, e achamos que uma nova era está se abrindo para a humanidade, uma era de menos desperdício, menos consumo e mais respeito ao meio ambiente. O capitalismo não pode viver nem com nem sem o consumo. E aí?

http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 27/11/2008

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